QUINHENTOS ANOS DE BRASIL – COMPROMISSO COM O FUTURO

Arthur Leonardo de Sá Earp, Associado Titular, cadeira nº 25 – Patrono Hermogênio Pereira da Silva

O nosso olhar para a História dos quinhentos anos não pode ser uma contemplação. Tem que ser um ato sério de refletir sobre os ensinamentos alcançados e as experiências vividas para marcarmos que rumo tomar agora, a fim de construirmos um amanhã que certamente não pode ser igual ao hoje de tantas misérias físicas e morais.

A História não é narrar acontecimentos pelo simples narrar. É estudá-los, para progredir.

As festividades que correm neste período por todo o País hão de diferir da celebração da conquista de uma taça. Não comemoramos um feito acabado, uma competição terminada com vitória. Devemos ter a consciência de que estamos dando relevo, com festas, assim como deve ser um casamento, a um compromisso verdadeiro em relação ao que vamos realizar na vida para atingir a felicidade, cientes das virtudes com que contamos e dos erros a corrigir.

A chegada das embarcações de Pedro Álvares Cabral às costas existentes em uma desconhecida vastidão oceânica ao poente é fato resultante de muitos fatores e causador de diversos outros a respeito dos quais temos que pensar.

Consideremos alguns pontos nesta oportunidade.

O encontro de terra depois de tantos dias de navegação audaciosa, em rota adotada deliberadamente para dentro de região inexplorada, significa o apuro dos conhecimentos da época, a utilização extrema da ciência e da habilidade náutica até então adquiridas.

Os portugueses dispunham de instrumentos de observação astronômica e de métodos de seu emprego, recursos materiais e intelectuais que iam sempre desenvolvendo. Dispunham de naus e caravelas as mais avançadas, a última palavra em construção naval. Dispunham de técnicas de navegação, de esquemas de exploração e de sistema de comunicações os mais elaborados a partir das expedições anteriores. Tudo isto foi dura e longamente trabalhado para ganhar eficiência adequada à conquista e à manutenção da liderança nos embates da expansão de domínio.

 

São afirmações genéricas, mas verdadeiras. Brotam da crítica dos mais sábios à fonte documental. São verificáveis em consagradas obras (1). As palavras que ouvem estão calcadas o mais das vezes no minucioso livro de Moacyr Soares Pereira intitulado A Navegação de 1501 ao Brasil e Américo Vespúcio (2).

(1) nota ao final

(2) ASA Artes Gráficas Ltda., 1984.

 

Exemplos concretos vão a seguir mencionados em confirmação das assertivas gerais.

Os barcos usados por Cabral e seus compatriotas contemporâneos constituiam, na linguagem de hoje, a tecnologia de ponta na fabricação dos veículos para deslocamento nos mares. O melhor barco representava uma vantagem indiscutível sobre a concorrência. Prova disto é que as naves que não mais serviam para a finalidade da empreitada ou que resultassem irremediavelmente avariadas em acidentes ou tempestades eram inteiramente desmontadas ou destruídas para que não dessem a conhecer como tinham sido feitas. Foi o que aconteceu com a nau de mantimentos da frota antecedente, a de Vasco da Gama, nas imediações do Cabo da Boa Esperança, após reabastecer com suas carga e tripulação os navios que seguiram no projeto de descobrir o caminho para a Índia (3). Por igual, entregue foi ao fogo a valiosa nau de Sancho Tovar, da frota de Cabral, que retornava de Cochim carregada de especiarias e encalhou ao largo de Melinde (4).

(3) Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama, Apresentação e Notas de Neves Águas, Publicações Europa-América, pág. 25.

(4) Eduardo Bueno, A Viagem do Descobrimento, Objetiva, 1998, pág.120.

De outra parte, o conhecimento e a comunicação se efetuavam pelos processos mais seguros e rápidos. Basta ver que Pedro Álvares Cabral e os demais comandantes da frota decidiram que o navio de mantimentos voltasse de Vera Cruz a Lisboa, com a notícia do “achamento”. A carta de Caminha não foi a única nem a mais importante mensageira do fato. O autor não era o escrivão da viagem. A Cabral, chefe supremo do expedição, cabia se dirigir ao Rei por seu auxiliar de escrita oficial e enviar-lhe também os relatos técnicos importantíssimos e secretos dos pilotos. Conforme consta da Relação do Piloto Anônimo, que é o único documento da viagem inteira de Cabral à Índia (5), a nave conduziu as cartas, no plural, nas quais se continha quanto havia sido visto e descoberto (6). Além disto, o navio que regressou não cruzou diretamente para Portugal mas fez o levantamento da costa no sentido do norte, até a altura do hoje chamado Cabo Branco (7). Assim, foram acrescentados aos de Cabral dados demonstrativos da larga extensão do território jacente no lado ocidental do mar oceano. A embarcação chegou a Lisboa em agosto de 1500, como se presume (8). A soma de informações foi tamanha que logo a Coroa ordenou a partida de três navios para completar o descobrimento. Eles içaram velas em maio de 1501 (9).

(5) Moacyr Soares Pereira, A Navegação de 1501 ao Brasil e Américo Vespúcio, ASA Artes Gráficas Ltda., 1984, pág. 23.

(6 ) in Sílvio Castro, A Carta de Pedro Vaz de Caminha, L&PM, 1985, pág. 104.

(7) Moacyr Soares Pereira, A Navegação de 1501 ao Brasil e Américo Vespúcio, ASA Artes Gráficas Ltda., 1984, pág. 11.

(8) pág. 10 e 16.

(9) págs. 9, 18.

Esta expedição é raramente citada. Sem dúvida, porém, excede de muito à de Cabral na produção das causas condicionantes dos quinhentos anos brasileiros.

Em um dos navios, viajava Américo Vespúcio, responsável por valiosos e discutidos escritos. A caminho do Brasil, a frota topou por acaso com navios de Cabral que retornavam do Índico e estavam fundeados nas proximidades do Cabo Verde, em junho de 1501 (10). Ali houve troca de informações e registro de dados. A inesperada reunião patenteia a presteza com que a Coroa determinou aprofundar o conhecimento sobre a nova terra e a capacidade material de aparelhar com rapidez a missão, nem ainda Pedro Álvares recolocara os pés na capital lusa.

(10) pág. 24.

 

Não findara a expedição em que ocorreu o descobrimento, no último ano do Século XV, e já se inaugurava nos primeiros meses do Século XVI a viagem cujo destino exclusivo era a Terra de Santa Cruz.

Para tal segundo, mais amplo e específico descobrimento do Brasil os enviados de D. Manoel percorreram a costa a partir do Rio Grande do Norte (11), até a área do que pode ser identificada como sendo o Rio Grande do Sul, de agosto de 1501 (12) a março de 1502 (13). Recolheram, em arribada intermediária, os dois degredados desembarcados por Cabral em Porto Seguro. E porque em toda a extensão visitada não tivessem apurado a existência de grandes coisas, minério algum, viraram a proa das embarcações para o mar alto e depois de trajeto pelas águas ainda mais ao sul foram para o Norte, baixando âncora em Lisboa a 22 de julho de 1502 (14).

(11) pág. 182.

(12) pág. 175.

(13) pág. 301.

(14) págs. 25, 312.

Somaram-se às informações transmitidas pelos navegantes, as narrativas dos dois degredados deixados por Cabral e, como dito, levados de volta ao reino pela flotilha de 1501-1502. Seus depoimentos sobre o que apuraram nos vinte meses que viveram entre os tupiniquins foram consignados e assinados no Ato Notorial de Valentim Fernandes de 1503 submetido publicamente ao Monarca. Eles haviam permanecido aqui de abril de 1500 a dezembro de 1501 (15). Era esta outra via eficiente de desvendar a realidade e de documentá-la, ao agraciar os banidos com a permissão de regresso ao convívio dos familiares, no solo pátrio.

(15) pág. 29.

Eis aí os exemplos que demonstram a excelência dos meios acionados pelos lusitanos.

Através deles a terra estava razoavelmente conhecida.

Ela não oferecia, porém, vantagens que aconselhassem dar-lhe primazia em relação ao Oriente.

O levantamento da costa quase inteira do Brasil exibiu nos primeiros contactos pobres atrativos, em comparação com o que ofereciam os portos para lá do Cabo da Boa Esperança.

A balança pesou mais do lado da Índia, de gente ricamente vestida e cheia de bens. O Brasil só encheu o prato com selvagens nus, de mãos vazias, e com toras de árvore de tinta.

Pouco, pois, dela se ocuparam por longos anos. Após o descobrimento, a aludida descida pelo litoral e as investigações de outra expedição, há um significativo vazio de atividade.

A razão reside em que de logo seria pequeno o lucro. Com o encontrado não se calculava lucro alto e imediato, coisa que, para usar expressão de Vespúcio em carta anterior,

“é aquilo que hoje em dia se tem importante, e principalmente neste Reino onde reina a cobiça desordenada” (16).

(16) carta de 18 de julho de 1500, in Américo Vespúcio, Novo Mundo, L&PM/ História, 1984, pág. 62.

Este é o ponto histórico fundamental cuja interpretação origina os pensamentos que expomos. Deixaram o Brasil esquecido e a ele só se lançaram, submetido como presa, quando interessou e interessou nesta condição de caça a ser largamente devorada. Guardamos marcas até hoje indeléveis deste procedimento.

Navios, técnicas de navegação, métodos intensos de pesquisa, até com o uso de testemunhos vivos como o dos degredados, registro e documentação dos achados, todo este aparato era de elevado nível, invejável hoje, quando também devemos procurar o máximo aperfeiçoamento instrumental.

Estava ele, no entanto, aplicado primordial e quase que exclusivamente na apropriação de riquezas. Por isto, repita-se, como o Brasil mostrou de início poucos tesouros, não entrou nos cuidados do Poder. E quando entrou foi como objeto, para saciar a busca de preciosidades, e não como sujeito, ou seja, agente partícipe de um projeto de aprimoramento do gênero humano em comunidade.

A ocupação verdadeiramente só começou quando se tornou vantajoso abastecer a bolsa com o que havia no continente ocidental, próximo e bem mais rico do que a princípio se soubera.

E então imperou o extrair e não o desenvolver.

Da breve e inevitavelmente parcial reflexão aqui feita, impõe-se-nos concluir que:

1 – o descobrimento foi resultado do uso do máximo do conhecimento e da técnica da época.

É a lição boa para nos dedicarmos ao progresso com tudo o que há de melhor em ciência e em instrumentos materiais.

Cabe um parêntese. Alguns dos documentos essenciais da História do Descobrimento se perderam, outros se conservaram por cópia e citações, poucos em original. Os recursos de hoje, como os que possibilitam o magnífico e cada vez mais abrangente trabalho da Câmara Municipal e do Museu Imperial, nesta data apresentado em nova etapa, permitem superar os riscos de deterioração e alcançar condições excelentes de pesquisa. A continuação do projeto merece ser valorizado acima das contingências políticas e dos interesses pessoais, ainda que legítimos. É ele satisfação exemplar e refinada daquela preocupação, não tão eficiente de registrar e conservar o conhecimento, que os responsáveis pelos descobrimentos tiveram.

Feita a irreprimível observação à importância do lançamento do disquete, fato que se liga ao ensinamento positivo que acabamos de resumir, acrescentemos que:

2 – o descobrimento não trouxe como predominantes as melhores influências de ordem moral, isto é, nasceu mal inspirado em nossa terra o conjunto das estruturas sociais, das atitudes e comportamentos humanos. Isto ficou evidente pela inatividade aqui, enquanto a cobiça estava saciada alhures, e por prevalecer depois, ao se tornarem difíceis as outras fontes de riqueza, a ação com o intuito de sugar os bens naturais existentes, sem respeito aos habitantes primitivos e sem o propósito de construir um ambiente físico em que toda e cada pessoa pudesse viver bem e realizar suas potencialidades.

É a lição de advertência para alterarmos os nossos rumos visando à verdadeira criação de uma pátria, lar, talvez não opulento, mas digno de todos, sem exceção.

Utilizemos ao máximo o conhecimento e os recursos técnicos mais avançados. Mas direcionemos nossos esforços para o bem do ser humano, de todos os seres humanos. Temos que contrapor à exploração econômica a construção do bem comum.

Estamos em uma casa do Poder constituído e em cerimônia oficial. É bom dizer-se que os governantes de hoje não podem ser disfarçadamente como os de outrora, cujo retrato genérico é o de uma autoridade gananciosa.

O governante de hoje, nascido deste povo, tem que estar voltado para o bem do povo.

Por ele é preciso começar um basta ao pensamento centrado nas riquezas materiais; por ele é preciso começar um real avanço no atendimento das necessidades dos miseráveis, primeiro passo para que se abra um novo período de quinhentos anos a ser coroado com a dignificação de todo e cada habitante do Brasil.

Não comemoramos um passado de todo glorioso, mas celebramos uma séria tomada de compromisso com os nossos descendentes, para os próximos séculos.

Esta deve ser a festa. A festa do compromisso com o futuro.

Nota (1): Fonte documental composta sobretudo pelas Carta de Pero Vaz de Caminha, Carta de Mestre João, Relação do Piloto Anônimo, Carta de Cabo Verde e a de Lisboa, a Mundus Novus e a Lettera. São verificáveis em obras como as de Manoel Ayres de Cazal, Jaime Cortesão, João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda, Luís da Câmara Cascudo, Capistrano de Abreu, Álvaro Velho, Simão de Vasconcelos, Sousa Viterbo, Francisco Adolfo de Varnhagen, Moacyr Soares Pereira.