RECORDANDO JOÃO DE DEUS CAMPOS FILHO

Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, associado emérito, ex-associado titular, cadeira n.º 37, patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima

No ano em que se comemora o septuagésimo aniversário da fundação do Instituto Histórico de Petrópolis, transcorre o centenário da imprensa diária nesta cidade, feito alcançado pela já secular “Tribuna de Petrópolis”, em 1º de janeiro de 1908.

Ao iniciar-se a segunda década do século XX, esta urbe experimentou verdadeira explosão no setor jornalístico, onde despontavam profissionais de grosso calibre, a maioria oriunda do Rio de Janeiro com seu formidável cabedal de conhecimentos, com sua experiência nos grandes periódicos da Capital Federal, com sua natural influência nos meios de comunicação da época.

Entre estes alinhavam-se Gregório de Almeida e o Conde Afonso Celso de Assis Figueiredo.

Mas havia também a prata da casa na qual se inseria a figura original e irrequieta do jovem João de Deus Campos Filho.

Era então redator da “Tribuna” o jornalista Álvaro Moraes que, em parceria com João Roberto d’Escragnole, imaginou criar nestas serras um Círculo de Imprensa, que haveria de aglutinar os homens que aqui labutavam nos diversos periódicos em circulação.

Em agosto de 1916 a idéia começou a tomar forma, ao mesmo tempo em que aparecia aqui a revista literária “A Serrana” de propriedade de Júlio Muller, tendo como secretário Álvaro Machado.

Álvaro Moraes, de cuja coragem e espírito crítico ninguém duvidava, ousou consignar estas palavras no primeiro número da revista em apreço:

“Petrópolis é o túmulo de todas as boas iniciativas e, as que dizem respeito às letras, dessas, nem falar é bom! Há muito que se proclama que não há nesta cidade vida artística ou literária, apesar dos atrativos que ela oferece. A esse propósito é tradicional a má fama de Petrópolis. Para faze-la esquecer, transformando-a num centro modesto, embora, de atividade artística, esta cidade da politicagem e das intriguinhas e invejas pessoais, torna-se preciso um trabalho longo e persistente, é mister que saibam os escolher com aplausos todas as belas iniciativas que surjam, encorajando e estimulando os seus promotores. É necessário em suma que mudemos de rumo”.

Era o mote do grande projeto que estava a caminho e que já contava com importantes adesões.

Em 1º de setembro de 1916, no salão da Sociedade Beneficente Petropolitana, deu-se a reunião do grupo fundador do Círculo de Imprensa. Álvaro Moraes explicou em rápidas palavras os fins da agremiação e apresentou um esboço dos estatutos. A mesa, dirigida pelo Cônego Thomaz de Aquino, diretor do Colégio São Vicente, fez eleger a comissão encarregada da elaboração dos atos constitutivos do Círculo, sendo proclamados os nomes de Álvaro Machado, João de Deus Filho, Álvaro Moraes, Luciano Tapajós, e, Antonio Geoffroy.

A 10 de setembro, no mesmo local, realizou-se a grande assembléia para a aprovação dos estatutos e eleição da diretoria definitiva da nova sociedade, que assim ficou constituída:
Presidente: Conde Afonso Celso; 1º Vice: João Roberto d’Escragnole; 2º Vice: Álvaro Moraes; 1º secretário: João de Deus Filho, 2º secretário: Álvaro Machado; tesoureiro: Edmundo Hees; procurador: Júlio Muller; bibliotecário: Anthero Palma.
Conselho deliberativo: Júlio Tapajós, Cônego Thomaz de Aquino, Bento Borges de Carvalho, Arthur Barbosa, Arthur de Sá Earp, Mário Martins, J. M. Lander, Ticiano Tocantins e João Mosna.

Lástima que João de Deus Campos Filho, em virtude de sua morte prematura, tenha ficado tão pouco tempo na diretoria do Círculo Petropolitano de Imprensa. Ainda assim teve oportunidade, em alguns momentos difíceis, de demonstrar sua energia e seu espírito conciliador, usando o sábio sistema latino: “fortiter in re, suaviter in modo”, ou seja decidido e firme em questões substantivas e suave nas adjetivas.

Em outubro de 1916 estourou nestas serras apimentada polêmica entre Arthur de Sá Earp e Candido Martins que ia pondo em risco a nova instituição petropolitana, ainda mal saída dos cueiros. Era preciso diligenciar rapidamente para apagar o incêndio. Reuniu-se a 10 daquele mês a diretoria e o conselho deliberativo do Círculo de Imprensa, para discutir o tema, tendo sido adotada o seguinte alvitre de João de Deus Filho:

“Intervir junto aqueles cavalheiros no sentido de obter que ponham termo à aludida polêmica; firmar um acordo com os diretores, proprietários ou gerentes dos periódicos locais em que fique estabelecido que se não aceitem em hipótese alguma, assim na parte editorial, como na seção livre, artigos insultuosos e que envolvam a vida privada de qualquer dos membros do Círculo de Imprensa”.

Esta medida saneadora era de enorme alcance e demonstrava como João de Deus Filho estava avançado para a sua época. Era costume naquele tempo resvalarem as polêmicas do campo das idéias, das opiniões para o mútuo ataque verbal, com perigosas incursões pela intimidade das personagens envolvidas na peleja, com insinuações aleivosas e até com chacotas aos eventuais defeitos físicos das partes.

Tudo isso hoje já está ao alcance das postulações indenizatórias por danos morais, mas em 1916 a ética na imprensa era letra morta e era por ela que se batia com coragem e clarividência o então jovem de 32 anos João de Deus Filho.

Na altura da aludida reunião, ficou decidido por unanimidade que J. M. Lander interviria junto a Candido Martins para que este encerrasse a polêmica e que João de Deus Filho faria o mesmo no concernente ao Dr. Arthur de Sá Earp.

De toda essa celeuma saia o Círculo de Imprensa fortalecido e prestigiada a competência moça de João de Deus Filho.

A personagem central desta matéria atinha-se com indizível ardor a diversas atividades intelectuais. Com sólida formação humanista, era versado em filosofia, em sociologia e sobretudo cultor da língua e da literatura de sua pátria.

Foi jornalista combativo, pondo nos seus textos pitadas de crítica, de sátira e de humor, reveladoras de um estilo inconfundível. Quiçá contaminado pelos requintes vernaculares euclideanos, abusava um pouco dos termos incomuns e até de certos preciosismos. Mas esses exageros não tornavam sua prosa provinciana. Era essencialmente cronista e como tal deixou colaboração na “Tribuna de Petrópolis”, n´ “O Cruzeiro”, do qual foi fundador, na “Cidade de Petrópolis”, no “Correio de Petrópolis”, no “Diário de Petrópolis” e no “Diário da Manhã”, onde no começo de 1918 manteve uma seção intitulada “Esquírolas” ou sejam em sentido figurado, farpas.

Para a devida comprovação do que foi dito acima acerca do estilo jornalístico de João de Deus Campos Filho, vale transcrever aqui o trecho inicial do primeiro artigo da referida seção no “Diário da Manhã”, publicado em 1º de janeiro de 1918:

“As nossas leis em geral são pessimamente redigidas. E não é de admirar que assim aconteça pois os Licurgos que nas diversas esferas legislam para esses Brasis, são por via de regra cogumelos brotados no terriço (o mesmo que estrumeira) da politicalha e porém refratários aos bons costumes e às boas letras.

Tais considerações foram-me sugeridas pela leitura do Regimento Interno da Câmara Municipal de Petrópolis, curioso documento em que se patenteia de modo peremptório a inópia (o mesmo que pobreza, indigência, penúria) intelectual daqueles que o redigiram. Não lhe falta somente estilo, vernaculidade, fulgor literário, o que se compadece, perfeitamente, com a índole das leis e até lhes dá realce; ali, os comezinhos cânones gramaticais foram desrespeitados com uma sem cerimônia inconcebível. Uma coisa monstruosa que nos deprime e deslustra, pois, a quem não nos conheça de perto, poderá fazer supor que a cultura dos que têm acento no areópago à praça Mauá, se mede pelo estalão (igual a padrão, medida) da do senhor Domingos Nogueira, pessoa, que conforme corre, envolve no mesmo superior desdém a sintaxe e o sabão”.

E a matéria prosseguia nesse mesmo estalão, como ocorreu com as demais que se lhe seguiram, publicadas nas edições de 19 e 25 de janeiro, 6 e 20 de março, 21 de abril e 2, 8 e 9 de maio de 1918.

João de Deus Campos Filho foi professor de português do Colégio São Vicente de Paulo, não um professor regimental, desses que ensinam sem transmitir, que debulham seus conhecimentos sem cativar o aluno, sem impor-se à memória deste para o resto da vida. João de Deus Filho era professor no sentido de formador de discípulos, pedagogo nato, com direito à marca registrada.

Profundo conhecedor da língua pátria e seu defensor intransigente, era um lapidário da frase, um cultor da elegância da forma, sem descurar da consistência do conteúdo de seu discurso. Jamais foi palavroso, evasivo, embromador. Seus períodos bem elaborados tinham abrangência e profundidade e revelavam sua invulgar erudição haurida nos melhores autores nacionais e estrangeiros.

Havia quase sempre uma chispa de vaticínio nas suas produções e a história haveria de comprovar que ele pouco se enganara.

Vanguardeiro dos empreendimentos culturais em Petrópolis, naquela Petrópolis tumular de que falava Álvaro Moraes, foi um dos incentivadores da criação da Academias Literária São Vicente de Paulo, organizada pelos próprios alunos do colégio desse nome, sob a orientação de alguns professores, entre eles, a personagem central desta matéria.

E foi de João de Deus Campos Filho o discurso de inauguração da Academia, no dia 3 de maio de 1910. Está publicado na íntegra em o nº 1 da revista da nova sociedade (há um exemplar na biblioteca do Museu Imperial) periódico que tinha como diretores Ascanio da Mesquita Pimentel, então aluno daquele educandário e Raul Leoni Ramos, que se tornara laureado poeta petropolitano com reconhecimento em todo o país.

Merecem transcrição aqui alguns trechos do discurso de João de Deus Filho, para que se possa aferir o seu respeito pela língua nacional e para que se conheça um pouco de sua capacidade vaticinadora.

Dizia ele que a Academia havia sido criada “não como pretexto para exibições pedantescas ou fomento de estólidas vaidades – mas tão somente em benefício da educação literária, cívica, dessa lusida falange de moços, que no recesso amorável desta casa de ensino, se apercebem para ir colaborar na obra ingente da grandeza da pátria”.

O programa da Academia estava resumido no seguinte: “cultivo da língua materna”.

E consoante este mote, ousou dizer o professor algo que somente se agravou ao longo dos anos:

“O povo brasileiro assume um destaque deveras lamentável, pelo desprendimento que patenteia por tudo o que concerne à sua língua nativa, essa língua tão maravilhosamente rica de cores e de sonoridades com que se podem traduzir, com a tonalidade exata, todos os estados d’alma e todos os aspectos da natureza”.

Mais adiante:

“Este curioso caso patológico, tem a meu ver, as suas raízes nos institutos de ensino secundário, onde maus professores, com os seus obsoletos processos de ensino, não fazem outra coisa senão incutir no ânimo da mocidade uma irremediável aversão, uma repugnância irreversível pelo idioma nacional.

A mocidade não sabe a língua do seu país, porque lh’a não ensinam convenientemente. Longe de ser criminosa, ela é a grande vítima de uma certa casta de abutres tão audazes, quão perniciosos, que por aí pululam. Improvisados em mestres da língua, quando lhe não conhecem os segredos e as belezas e nem para uso próprio a sabem manejar”.

A atualidade desses conceitos é de pasmar. Mas é preciso dizer que aquilo que João de Deus Filho averiguou em 1910, está multiplicado por mil. A língua pátria virou uma espécie de lata de lixo, onde sob os olhares complacentes das autoridades, dos professoroides promovidos a mestres e dos meios de comunicação são jogados de cambulhada o idioma, já estropiados pelos gritantes erros gramaticais e uma pletora de estrangeirismos, alguns indecifráveis pelos olhos e ouvidos da população em geral.

Ainda em 1910 viviam e pontificavam mestres de verdade, sem os diplomas hoje distribuídos a torto e a direito para documentar mera presunção de saber.

Enfim resta dizer, para coroar essa despretensiosa homenagem ao imenso João de Deus Campos Filho, que ele nasceu em Petrópolis em 1884 e morreu nesta mesma cidade em 19 de outubro de 1918, dia do padroeiro São Pedro de Alcântara. Tinha 34 anos. Foi vítima da terrível epidemia de gripe cognominada “Espanhola”. Coincidentemente completam-se neste 2008 os noventa anos de seu falecimento.

Apesar de ser João de Deus, Papai do Céu não o poupou em plena mocidade produtiva. Roubou prematuramente a Petrópolis um de seus raros talentos, desses que só nascem em séculos alternados.

Tenho para mim uma certeza advinda do estudo da dinâmica intelectual de João de Deus Filho: tivesse ele vivido mais vinte anos e estaria entre os que fundaram o Instituto Histórico de Petrópolis.