A REFORMA CONSTITUCIONAL DE 1903
Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima
Há cem anos, no mês de setembro, estando a capital do Estado de volta a Niterói, a Assembléia Legislativa votou a tão esperada reforma da Constituição de 1892, quando agonizava o período presidencial de Quintino Bocayuva e com ele o próprio Estado do Rio de Janeiro, que perdera em treze anos o prestígio e a pujança de que desfrutara durante o segundo reinado.
A reforma foi um ajuste e uma correção de rota necessária na contingência falimentar em que se encontrava a terra fluminense e a grande maioria de seus municípios, a arrastarem-se como sombras nos desvãos da burocracia, faltos de recursos, de investimentos, de esperança.
Uma convergência de fatores havia provocado a bancarrota, avultando entre eles a crise cafeeira, o péssimo desempenho do Presidente Quintino e os reflexos do aperto fiscal provocado pelo governo Campos Sales, que encerrara o seu mandato a 15 de novembro de 1902.
Após a morte de José Thomaz da Porciúncula, ocorrida pouco depois do primeiro racha no Partido Republicano Fluminense, despontou como líder absoluto no Estado, o Dr. Nilo Peçanha, político habilíssimo, tipo macunaimesco, figura de enorme trânsito fosse na órbita estadual, fosse na federal, deputado com vários mandatos, abolicionista e republicano convicto, homem capaz de reverter qualquer situação por pior que ela fosse.
Surgiu como candidato natural à sucessão de Quintino Bocayuva e prometia apagar a lembrança da péssima situação em que se encontrava seu Estado.
Respaldado pelas grandes forças políticas da época e desfrutando de enorme simpatia popular, o que menos importava, já que as eleições eram mesmo decididas no tapetão da Comissão de verificação de poderes da Assembléia Legislativa, Nilo Peçanha venceu o pleito, antes que se operasse a reforma constitucional que, em se tornando realidade, dois meses depois da eleição, haveria de facilitar e muito a sua Presidência e o seu trabalho de reconstrução do Estado.
Mas essa mesma reforma, que trouxe em seu bojo algumas benesses, semeou também a discórdia e o desentendimento, ao longo das duas primeiras décadas dos novecentos, por causa da chicana que alguns de seus dispositivos ensejaram. E muita vez, protagonizando esse expediente pouco recomendável, estava o treteiro Nilo, com suas artimanhas, abrindo o caminho para conquistas não muito lisas.
Vejamos alguns pontos dessa reforma cujo centenário agora comemoramos.
A lei nº 600, de 18 de setembro de 1903, mais conhecida como lei da reforma constitucional, trouxe, como elementos inovadores de maior relevo, os seguintes:
Art. 12 – O Presidente do Estado passaria a tomar posse não mais perante a Câmara Municipal da capital fluminense, mas perante o Tribunal da Relação (equivalente hoje ao Tribunal de Justiça), desde que não se achasse reunida a Assembléia Legislativa.
Art. 13 – O Presidente do Estado passaria a exercer o seu cargo por quatro anos, não podendo ser reeleito ou eleito Vice-Presidente para o quatriênio seguinte.
Art. 14 – Ficava assim substituída por quatriênio a palavra triênio do art. 48 e do § único do art. 47 da Constituição do Estado.
Art. 18 – Os diferentes ramos do serviço do Estado seriam reunidos em uma única Secretaria e distribuídos segundo a necessidade dos mesmos.
Art. 30 – Foi criado o Juízo de Feitos da Fazenda Pública do Estado.
Art. 31 – No concernente à administração local, ficou estabelecido que ela seria exercida:
§ 2º, I – pelo Presidente da Câmara;
II – pelo Prefeito de nomeação do Presidente do Estado;
a) nos municípios onde o Estado tivesse sob sua responsabilidade pecuniária serviços de caráter municipal;
b) nos municípios que tivessem contratos celebrados com o abono ou fiança do Estado.
Art. 34 – Nos casos de duplicatas de Câmaras, o assunto estaria afeto ao Tribunal da Relação.
Art. 42 – O imposto de indústrias e profissões que era municipal passou a ser do Estado.
Disposições Transitórias:
Art. 1º – Foi extinto o Tribunal de Contas do Estado.
Art. 2º – O prazo de quatro anos estabelecido no art. 13 da reforma, vigoraria para o período presidencial que iniciar-se-ia a 31 de dezembro de 1903.
No atacado a reforma tinha alguns pontos positivos. Afinal ela enxugava a máquina administrativa do Estado, diminuindo as despesas na emergência de uma situação verdadeiramente falimentar.
Outra boa solução veio no bojo do art. 34 que atribuía tão somente ao Tribunal da Relação a competência para julgar os casos das duplicatas de Câmaras Municipais. Tratava-se de impedir as lamentáveis ocorrências de fins do século XIX, quando em Campos dos Goitacazes disputavam duas Câmaras a sua legitimidade, fato que desgastou ainda mais o já combalido governo estadual, provocando inclusive o primeiro racha no Partido Republicano Fluminense.
Mas no varejo, alguns artigos deixaram a desejar e outros haveriam de provocar muitas celeumas no curto e médio prazos.
A transferência do imposto de indústrias e profissões para o Estado, em caráter emergencial e provisório, dizia o texto da lei, foi um tranco nos já combalidos orçamentos municipais. E a criação das prefeituras, nos casos previstos no art. 31, seria uma porta aberta para a intervenção do Estado na vida das comunas, como haveria de acontecer pela mão do ardiloso Nilo Peçanha ao longo das duas primeiras décadas dos novecentos.
Mas as questões mais sérias advieram da interpretação dos artigos 13 da reforma propriamente dita e 2º das disposições transitórias.
E os problemas oriundos desses dois dispositivos legais foram também provocados pelo trêfego Nilo Peçanha, sempre buscando no casuísmo e na advocacia em causa própria a saída para tortuosas maquinações.
É certo que a eleição de Nilo Peçanha para a presidência do Estado deu-se em julho de 1903, portanto dois meses antes da promulgação da reforma constitucional.
Ora, com base nesses fatos irrefutáveis e cronológicos, o artigo 2º das disposições transitórias da reforma não tinha por que ser concebido daquela forma, pois alterava a regra do jogo sucessório, depois dele ter sido tecnicamente iniciado.
Nilo foi eleito para cumprir um mandato de três anos e não de quatro, como posteriormente à sua eleição determinou o artigo 2º das disposições transitórias.
Mesmo tendo sido o artigo em epígrafe considerado, oportunamente, como inconstitucional, o simples fato de sua existência haveria de provocar em futuro próximo sérios estragos na vida política do Estado. O palco foi pequeno para que brilhassem os jurisconsultos de plantão, fazendo realmente do direito, conforme as circunstâncias, um apanhado de sofismas, como muito bem definiu Zulmira Jabiraca.
Os desdobramentos do tema virão nos próximos capítulos.