Quando a onda libertária varreu os vários quadrantes das terras de Iberoamérica, nas primeiras décadas do século XIX, apenas o Brasil, por razões muito específicas, adotou a monarquia como forma de governo e com ela atravessou praticamente toda a centúria.
Todas as demais nações que se formavam ao nosso redor, ao sul, a oeste e ao norte, aderiram à forma republicana , com menor ou maior sucesso.
Aos olhos de tantas repúblicas, lindeiras ou não, éramos uma nódoa a manchar o continente, segundo diziam, vocacionado para a democracia, para a liberdade de escolha dos governantes.
Enfim éramos tidos como imperialistas, como usurpadores de territórios alheios, como megalômanos expansionistas.
Isso está consignado nas entrelinhas, e mesmo em discursos frontais, de próceres argentinos, uruguaios, chilenos e outros mais.
Mas apesar das restrições e retalhações, do ódio e da desconfiança, a grande exceção na América, dava lições de estabilidade política, de prosperidade econômica, de desenvolvimento harmônico, de coesão interna, de paz, de respeito às instituições. Enquanto isso, aqueles que se vangloriavam de serem republicanos, democráticos, libertários, viviam quase sempre em acirradas disputas caudilhescas, em pugnas sanguinárias, que lhes roubavam a seiva vital do progresso e um mínimo de equilíbrio que lhes possibilitasse a sobrevivência como Estados de direito.
Mas a república como idéia, como cogitação, como movimento, sempre esteve latente no Brasil e os mais apaixonados pelo tema, viam nela um inevitável elo de definitiva aproximação com os povos hispanoamericanos.
Ledo engano. A cultura da desavença, do antagonismo, da digladiação separava irremediavelmente lusófonos e hispanófonos, inoculada que fora no espírito das partes desde os mais remotos tempos coloniais, pelos impérios ibéricos.
E a verdade é que, passada a euforia da novidade republicana no Brasil, vieram os Zeballos e outros mais a alimentar a velha fogueira das diferenças entre brasileiros e hispanoamericanos, mesmo apesar do esforço de alguns apóstolos empenhados na sadia e construtiva aproximação de nós todos, os chamados americanistas lato sensu.
Foi nos campos do Paraguai, durante a Guerra da Tríplice Aliança ( 1865 / 1870 ) que a idéia republicana brasileira tomou impulso. Foi da inconformada ala militar, diante das tristes ocorrências geradoras do maior genocídio da História da América, que partiram as primeiras reações contra a monarquia e sobretudo contra a possibilidade de um terceiro reinado desempenhado por uma mulher que tinha a seu lado um estrangeiro, usurpador das glórias alheias. Tratava-se de uma referência da presença do Conde D’Eu na parte final da guerra, roubando a cena a velhos e combativos oficiais brasileiros.
E tanto assim foi, que terminada a refrega a 1º de março de 1870, já a 3 de dezembro do mesmo ano, era divulgado o Manifesto do Partido Republicano, firmado por figuras de incontestável prestígio político, profissional e social e que haveriam, alguns deles, de prestar à República, depois de sua proclamação, relevantes serviços.
Lá estavam o Dr. Joaquim Saldanha Marinho, ex-Presidente de Minas e de São Paulo, advogado de renome; o Dr. Aristides da Silveira Lobo, advogado, depois ministro durante o Governo Provisório; Cristiano Benedito Otoni, engenheiro e empresário, de tradição liberal; o Dr. Pedro Antônio Ferreira Viana, advogado e jornalista; Quintino Bocaiuva, jornalista, futuro Ministro de Exterior durante o Governo Provisório, Senador pelo Estado do Rio de Janeiro e seu Presidente no triênio 1901/1903; o Dr. Joaquim Maurício de Abreu, médico, mais tarde Presidente do Estado do Rio de Janeiro, no triênio 1895/1897; o Dr. José Lopes da Silva Trovão, médico, jornalista e poeta, grande ativista do movimento.
Um tanto palavroso e pouco objetivo, sem conter propriamente um programa, o manifesto era bastante enfático naquilo que concernia ao americanismo, ao afirmar, já na conclusão:
“Somos da América e queremos ser americanos”.
A nossa forma de governo é em sua essência e em sua prática, antinômica e hostil ao direito e aos interesses dos Estado americanos.
A permanência dessa forma tem de ser, forçosamente, além da origem da apressão no interior, a fonte perpétua de hostilidades e das guerras com os povos que nos rodeiam.
… Perante a América passamos por ser uma democracia monarquizada, onde o instinto e a força do povo não podem preponderar ante o arbítrio e a onipotência do soberano.
… “o nosso esforço dirige-se a suprimir este estado de coisas, pondo-nos em contrato fraternal com todos os povos e em solidariedade democrática com o continente de que fazemos parte.”
Esses arroubos um tanto líricos e utópicos, dominaram os discursos republicanos durante toda a campanha que durou 19 anos, até que raiasse o 15 de novembro, quando os do palanque passaram ao gabinete e acabaram por descobrir que na prática a teoria é outra.
Esse americanismo de fachada, brotou em vários momentos já na gestão do Governo Provisório da República.
Por decreto de 14 de janeiro de 1890, foram declarados de festa nacional, os seguintes dias do ano:
1º de janeiro – consagrado à comemoração e confraternização da humanidade;
21 de abril – consagrado à comemoração dos próceres da independência brasileira reunidos em Tiradentes;
03 de maio – consagrado à comemoração do descobrimento do Brasil;
13 de maio – consagrado à confraternização dos brasileiros;
04 de julho – consagrado à comemoração da república, da liberdade e da independência dos povos americanos;
07 de setembro – consagrado à comemoração da Independência do Brasil;
12 de outubro – consagrado à comemoração do descobrimento da América;
02 de novembro – consagrado à comemoração geral dos mortos;
15 de novembro – consagrado à comemoração da pátria brasileira.
Do exame desse calendário de festas nacionais, percebe-se de imediato a absoluta exclusão dele a toda e qualquer celebração religiosa, por mais tradicional que fosse. Nem o Natal, nem a 6ª feira da Paixão, nem o Corpus Christi, foram respeitados.
Por outro lado, os membros do Governo Provisório, estabeleceram desde logo o culto ao 04 de julho, dia da independência norte-americana, que consagraram à comemoração da república e da liberdade, valendo os Estado Unidos como autêntico paradigma para esses americanistas de ocasião.
E o dia mesmo da República, o 15 de novembro passou a significar a data da prática brasileira, como se antes não houvesse pátria alguma. Arroubos tupiniquins de imediatistas exacerbados.
Aliás no Paraguai, a data brasileira sempre comemorada, como dia da pátria, é o 15 de novembro , nunca 7 de setembro. Repúdio à monarquia que afinal se envolvera numa guerra inglória, impopular e genocida, ou contaminação pelo decreto de 14 de janeiro de 1890?
Aqui em Petrópolis, a febre republicana destronou não só o Imperador, mas nomes tradicionais de logradouros, substituindo-os pelos de próceres americanos, como Washington, Juarez, Moreno, Bolivar, San Martin .. Tudo fachada emblematizadora, enquanto os problemas cruciais eram postergados pela própria instabilidade do novo regime.
E, em muitas outras cidades brasileiras, o quadro não foi outro.
Cobriram alguns santos para descobrir outros, nada mais.
Outra barretada irresponsável ocorrida logo em janeiro de 1890, foi o precipitado ajuste que o Ministro do Exterior Quintino Bocaiúva intentou fazer com o governo argentino, a propósito do velho problema das Missões, ao arrepio do belo trabalho já desenvolvido e praticamente concluído pela monarquia.
Afinal era preciso demonstrar serviços e propalar aos quatro cantos que a República brasileira era americanista de verdade. Proselitismo barato e imediatista, sem qualquer resultado prático, conforme vou demonstrar numa outra altura, em trabalho específico.
Por enquanto, reporto-me apenas às palavras de Quintino, nas reuniões do conselho do Governo Provisório e que tudo têm a ver com a matéria ora desenvolvida.
Na sessão de 02 de janeiro de 1890, disse o então Ministro do Exterior: “que de acordo com o seu ilustre colega, o Sr. Benjamin Constant, ministro da Guerra, sujeitava de novo à consideração do Conselho a questão de limites entre os Estados Unidos do Brasil e a Argentina, declarando que tinha por esgotada a matéria a discutir, manifestando-se em sentido favorável ao acordo direto entre os dois países e à aceitação de uma linha divisória, por si anteriormente indicada, como o meio mais razoável de se concluir uma transação honrosa para ambos os governos e demonstradora dos sentimentos que hoje existem entre os dois povos, para a manutenção da paz e boas relações entre ambos os Estados. (grifo meu)”
Depois de tudo muito bem discutido, ficou autorizado Quintino Bocaiúva a celebrar o tratado em cogitação com o representante argentino.
Na sessão de 7 de janeiro de 1890, divulgou Quintino os resultados finais de seus estudos sobre a questão das Missões, recebendo o aval definitivo de seus pares.
O que se passou depois foi uma calamidade.
Só para lembrar: Quintino Bocaiúva era filho de pai baiano e mãe argentina.