A REVELAÇÃO DE UM PATRIMÔNIO CULTURAL

Francisco de Vasconcellos, Associado Emérito –

Há certas incoerências e alguns paradoxos brasileiros, que longe de merecerem a crítica, a sátira ou a reprovação dos que os detectam, precisam ser valorizados como provas incontestáveis de nossa índole ecumênica, de nossa alma aberta aos povos, às crenças, às doutrinas e aos movimentos mais variados. As radicalizações, as xenofobias, os sectarismos e jacobinismos, foram sempre entre nós elementos circunstanciais e efêmeros, provocados por exaltações momentâneas conforme a maré e os ventos da política e dos costumes, quer no plano interno, quer no que concerne à conjuntura internacional.

Não aprendemos a cavar fossos, abismos, precipícios, por questões de ordem étnica, racial, religiosa, social, ideológica. Edgar Hans Brunner, com a sua extraordinária visão do mundo, afirma que o Brasil é talvez o país mais tolerante que ele conhece.

D. Pedro II, num momento de exaltação e de nervos à flor da pele, foi banido do país em 1889, mas vinte e um anos depois, aqui em Petrópolis, era homenageado em praça pública, quando da inauguração do monumento a ele dedicado. E o mesmo pano que protegeu a estátua do Marechal Floriano, antes de ser ela exposta aos olhos do povo, serviu para cobrir o velho Imperador, à véspera de sua entronização em bronze na cidade que carrega o seu nome.

Mas Petrópolis registra outras curiosidades, que confirmam essa nossa tendência a misturar alhos com bugalhos:

A rua Marechal Deodoro, desemboca na rua do Imperador; a rua Nilo Peçanha (republicano roxo) começa na Praça D. Pedro e termina na rua Barão de Tefé; e o Palácio Amarelo, símbolo do poder na República, está diante do antigo Palácio Imperial, hoje Museu.

E para arrematar, Petrópolis é a única cidade do Brasil e das Américas a receber da República o título de Imperial.

O Recife, tradicional baluarte republicano brasileiro, com suas memoráveis revoluções de 1817, 1824 e com a famosa Praieira, nunca admitiu que banissem de seus logradouros os nomes que lembram a monarquia, mantendo até hoje o Palácio das Princesas e o Testro Santa Isabel, como símbolos do antigo regime.

E a republicaníssima cidade paulista de Itú, montou o Museu Republicano Convenção de Itú, em plena rua Barão de Itaim.

Cheguei finalmente ao motivo desta matéria.

Poucas comunas brasileiras retratam ao longo de sua história a nossa índole abarcante e ecumênica como esta urbe bandeirante, que da Colônia aos tempos atuais, primou como segue primando pela desfronteirização cultural. Haja vista os seus cognomes: Boca do Sertão, Fidelíssima, Roma Brasileira, Berço da República, Cidade Missionária.

Itú vem de 1610, nascida de um pouso de tropeiros em demanda do caminho do Anhembí que buscava o coração da terra paulista, prolongando-se por Goiás e Mato Grosso.

A cana de açúcar não só sustentou a povoação, depois vila, pelo século XVIII afora, como trouxe para ela o esplendor arquitetônico e artístico em geral, através da construção de igrejas, de casas senhoriais e do desenvolvimento de expressivo trabalho artesanal, que tinha a madeira como matéria prima. Ali plantaram suas raízes alguns dos mais importantes clãs paulistas, que deram rebentos de primeira grandeza na constelação da intelectualidade e do poder, seja na pauliceia, seja no Brasil.

Nos dias incertos da nossa emancipação política, Itú foi um dos baluartes e respaldar a ação do Príncipe Regente, depois Imperador D. Pedro I.

Mal raiara o segundo reinado e Itú, recebia em 1842 foros de cidade, já no embalo do redirecionamento de sua vida econômica, agora fulcrada essencialmente no café. Novo surto de progresso e de riqueza baixou sobre o burgo, fazendo multiplicar as propriedades rurais, os edifícios urbanos, a arte religiosa e os requisitos civilizadores, quer no campo das artes, quer no da assistência social, quer ainda no concernente à educação.

Depois vieram a estrada de ferro e a indústria têxtil, dois elementos de aferição de progresso no Brasil do apogeu do Império.

Tanta grandeza não impediu que Itú abraçasse a causa republicana e já em 1873 promovia a histórica convenção que marcaria com letras de ouro essa fase significativa de sua trajetória, ao ponto de justificar na cidade a existência de um museu alusivo à efeméride.

Itú seria assim uma espécie de ponta de lança, na transformação da Província de São Paulo, de pouca expressão no Império, no pujante Estado que deve tudo à República e ao fortíssimo P.R.P.

Esse vanguardismo ituano, responsável pela opulência do município em todas as épocas e nos vários setores da atividade humana, provocou naquele privilegiado torrão u’a mistura de culturas, perfeitamente homogeneizada, sem fissuras capazes de p6or em risco esse extraordinário equilíbrio de massas e de forças.

E todo esse quadro foi em boa hora resgatado pelo empenho de Hélio Chierighini, Ismael Guarnelli, Jair de Oliveira e do Museu Republicano Convenção de Itú, que acabam de lançar a obra “Itú Patrimônio da Cultura Paulista.”

Não bastassem a apresentação gráfica, as tomadas fotográficas, a qualidade do material empregado na edição, o livro é um repositório do que há de mais expressivo na cultura material ituana, ao longo de três séculos.

Ali estão retratados aspectos da arte sacra da antiga Boca do Sertão, exemplares da beleza arquitetônica da Fidelíssima, figuras proeminentes da Roma Brasileira, itinerários do progresso do Berço da República, detalhes de requintadas decorações de interiores, da Cidade Missionária.

Tamanho cometimento, que revela a cores a coexistência mansa e pacífica do eclesiástico com o positivista, do monárquico com o republicano, do tropeiro com o senhorial, do artesanato com a indústria, e autêntico paradigma para que outras comunas, paulistas ou não, nele se espalhem afim de resgatarem esse riqueza, que é uma de nossas mais positivas e rentáveis marcas registradas – a alma tolerante e desfronteirizada.