SAINT HILAIRE PARA OS ÍNTIMOS
Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima
“Ontem li St. Hilaire as pinturas que ele elogia da Matriz do Sabará são do coro e não as da sacristia que aliás pareceram-me melhores. O vigário do Caeté ontem ao jantar disse que uma tia dele tinha sido amiga da irmã Germana milagrosa de que fala St. Hilaire”.
“Ontem mostraram-me o pau de jacarandá a que se arrimava o irmão Lourenço e não Fr. quando St. Hilaire o viu aqui”.
“Não tem aparecido carneiros e com razão diz St. Hilaire que “les paturages des montagnes de Minas Gerais conviennent parfaitement aux bêtes a l’aine”. St. Hilaire diz que há mais espécies vegetais na Serra do Caraça que na Piedade por ser aquela mais úmida. Na Caraça não dão as plantas tropicais. No alto da serra da Piedade St. Hilaire viu o morangueiro e ceraisto comum (Cerastium vulgatum) e o mouron dos pássaros (stellaria media) plantas européias”.
Tais as referências colhidas ao acaso no diário do Imperador D. Pedro II quando de sua viagem a Minas Gerais em março / abril de 1881.
Essas tomadas revelam o apreço que tinha o monarca pela obra de Saint Hilaire, que por certo o acompanhava em suas viagens, para que ele pudesse estabelecer parâmetros, fazer cotejos e até contestar informações veiculadas pelo atento e sagaz viajor francês de princípios do século XIX.
Lástima que o Imperador não tenha transformado esse seu insistente interesse pela produção intelectual hilairiana em atos concretos no sentido de vulgarizar entre nós os trabalhos de Saint Hilaire dedicados ao universo físico e cultural do centro / sul brasileiro. Se tal tivesse ocorrido, certamente inúmeros males, alguns irreversíveis, teriam sido evitados por nós, principalmente no que toca à agricultura, ao extrativismo, ao meio ambiente e ao patrimônio natural.
Lamentavelmente Saint Hilaire só foi traduzido para o português, quando já iam adiantados os novecentos e, mesmo assim, segue sendo um ilustre desconhecido no Brasil, já que de uma parte de sua obra só tomam conhecimento as rodas fechadas de intelectuais, que ainda assim pouco sabem da biografia do autor, e, do seu meio de origem.
No arquivo do Departamento do Loiret, sediado em Orleans, França, estão papéis que interessam ao curriculum vitae de Auguste François Cesar Provensal de Saint Hilaire.
Sob o nº B 59, existem duzentas folhas de papel com registros diversos. Ano de 1778. Num documento elaborado com as formalidades de estilo, está assentado o casamento dos pais do viajor francês – Auguste – François Provensal de Saint Hilaire, senhor de Ascoux e Anne – Antoniette Jogues de Poinville.
No mesmo arquivo há um manuscrito sob o título “Biographies du Loiret”, onde pude colher, quando de minha visita em 1982, algum material relativo ao botânico Saint Hilaire.
No verbete dedicado à personagem objeto desta comunicação, lia-se:
“Saint Hilaire Auguste de – Botânico de nomeada. Nasceu em Orleans a 4 de outubro de 1779. Membro fundador da Sociedade de Ciências de Orleans. Ele percorreu desde 1º de abril de 1816 ao ano de 1822, uma parte imensa do Império do Brasil e teve o cuidado de recolher não somente plantas, mas tudo o que concernia a esse país, sua administração civil e judiciária, os costumes e usos. Aspectos variados de uma natureza estranha à Europa, detalhes de estatística e geografia; informações úteis sobre agricultura, artes e comércio, encontram-se amiudadamente na narração de suas viagens, o que lhe confere grande importância. Aliás, seus numerosos achados lhe abriram as portas da Academia de Ciências, onde ele substituiu Lamarck, no dia 8 de fevereiro de 1830. Humboldt, no mês de julho de 1827, não hesitou em declarar que Saint Hilaire ocupava um dos primeiros lugares entre os grandes botânicos do século. Faleceu em Sennely em 1853”.
E o autor desses sintéticos dados biográficos, acrescentou ao seu estudo uma extensa bibliografia de Saint Hilaire que engloba não só os volumes que documentam as suas andanças pelo Brasil, mas toda a sua produção no que respeita à botânica geral e brasileira em particular.
São 54 títulos que rotulam volumes distintos ou encimam colaborações para periódicos especializados.
Não seria exagero afirmar que grande parte desse labor hilairiano, posto em letra de forma segue fora do alcance dos olhos do brasileiro comum e corrente e até dos mais ilustrados, que realmente só têm compulsado os volumes que trazem as viagens do filho de Orleans pelo nosso território.
Para nós, Saint Hilaire avulta como um dos mais importantes viajores estrangeiros das primeiras décadas do século XIX. Foi o homem que documentou os vários rincões brasileiros por onde passou, fixando com absoluta fidedignidade os inúmeros quadros do nosso meio físico e humano, alguns destes últimos ainda vivos nos desvãos da região centro / sul, não alcançados pelo chamado desenvolvimento nacional e pelas novidades impostas pelo progresso convencional.
O Brasil empolga o cerne da obra hilairiana, pois foi aqui que ele durante seis anos de intenso labor, se abasteceu de dados, de vivências, de contatos, de documentos. Mas foi na França, no seu torrão de origem, que ele ao voltar de sua aventura, se dispôs pacientemente a alinhavar, discutir, criticar, sistematizar, atualizar suas notas e impressões, de modo a produzir seus ensaios científicos, seus artigos para periódicos, seus alentados livros.
O Arquivo Departamental do Loiret não tem entre os seus papéis o registro de nascimento do nosso biografado. Segundo me informaram, as turbulências causadas pela Revolução Francesa, além das intempéries, provocaram a destruição desse e de outros assentamentos.
Saint Hilaire morreu celibatário a 30 de setembro de 1853 e o registro de seu óbito está no livro 4.621 de Sennely, referente aos anos de 1853 a 1862.
É a seguinte a íntegra do documento:
“Augustin François César Provensal de Saint Hileire 16º 7 – Ano de 1853, 1º de outubro às 5 horas da tarde. Nós, François Augustin Dotonnier, Oficial do estado civil da Comunidade de Sennely, Cantão de La Ferté – St. Aubin, circunscrição de Orleans, Departamento do Loiret. Compareceram o senhor Hilaire Stanislas de Large de Meux, com 66 anos de idade, proprietário, domiciliado no Castelo de Villiers, comunidade d’Ardou, cantão de La Ferté – St. Aubin (Loiret), cunhado e Louis Hilaire Le Cointe, com 58 anos de idade, cura de Sully sur Loire, sede do cantão, (Loiret), amigo. Os quais nos declararam que o senhor Augustin François César Provensal de Saint Hilaire, membro do Instituto (de França), Cavaleiro da Legião de Honra, com 74 anos de idade, nascido em Orleans (Loiret), filho, dos falecidos senhor François Augustin Provensal de Saint Hilaire, proprietário quando vivo e de Mme. Anne – Antoinette Jogues de Poinville, sua mulher, todos dois falecidos em Orleans, morreu solteiro e proprietário no dia de ontem às 7 horas da noite em seu castelo da terra de Turpinnière, comunidade de Sennely e os declarantes assinaram conosco o presente ato, depois da leitura lhes ter sido feita. Assinaturas ilegíveis”.
Saint Hilaire nasceu e morreu no seu país do Loiret, departamento da região central da França, que se limita ao norte com o do “Seine et Oise”; a nordeste com o do “Seine et Marne”; a leste com o de “Yonne”; ao sul com o de “Nièvre et Cher”; a sudoeste e oeste, com o de “Loire et Cher” e a noroeste com o de “Eure et Loire”.
O “Loire” é o grande curso dágua da região, agro-pastoril por excelência, máxime no tempo do botânico de Sennely, comportando, entretanto, alguns estabelecimentos industriais de renome. Gien, por exemplo, é tradicional centro de manufatura de faiança, assim como Briare é a terra da porcelana. Há em diversas povoações do departamento, fundições de ferro e cobre para o fabrico de ferramentas e, manufaturas de tecidos de lã e de objetos em madeira.
Orleans e Montargis, sempre foram os centros principais do Loiret, aglutinando 31 cantões e 349 comunidades.
A histórica Orleans, a que Saint Hilaire tanto ligou sua profícua existência, foi a Genobum dos romanos. No século V passou a ser Aurelianum. Clovis em 511 instalou ali o primeiro conselho eclesiástico da França. Joana D’Arc, heroína da guerra dos Cem Anos, libertou a cidade em 1429 e está imortalizada em belíssima estátua erigida na praça de Martroi. Os huguenotes ocuparam Orleans em 1567 e 1568 e, entre outras barbaridades que cometeram, incendiaram a velha catedral de Santa Cruz, que começou a ser construída em 1287.
Henrique IV, em 1601, lançou a pedra fundamental do novo templo, que os fiéis começaram a freqüentar a partir de 1829. Saint Hilaire, certamente, foi testemunha ocular desse acontecimento.
O “Hotel de Ville”, construído sob Francisco I e Henrique II, restaurado no século XIX, foi a residência dos governadores de Orleans, tendo sido também ocupado pelos reis e rainhas da França, de Francisco I e Henrique IV.
Tinha Saint Hilaire dez anos, quando explodiu a Revolução Francesa. Sendo de família nobre, é de se imaginar os problemas que teve de enfrentar com os seus, para escapar do jacobinismo feroz e burro. Passada a tormenta e, já em idade de se fazer homem, mandaram-no para Hamburgo onde deveria aprimorar-se na carreira comercial. Mas Saint Hilaire não havia positivamente nascido para o comércio, ou para os interesses materiais da vida. Cientista nato, voltou à pátria, e, em Paris decidiu especializar-se em botânica. Foi aluno de A. C. de Jussieu, de C. Richard e de R. Desfontaines. Repudiando em parte o teoricismo livresco, lançou-se ao campo em exaustivas pesquisas. Mas o mundo vegetal europeu, já de certo modo explorado, não o motivava. Na verdade queria conhecer outras terras, fazer descobrimentos, devassar matas intrincadas e sertões bravios. Os apelos vinham com certeza do trópico. Pensou em viajar pela África ou Ásia. Mas o seu destino seria mesmo a América Meridional.
Em princípios de 1816, o Duque de Luxemburgo fora nomeado por Luis XVIII, para representar a França junto à Côrte portuguesa no Rio de Janeiro. Procurava o monarca francês reatar as relações diplomáticas de seu país com Portugal, interrompidas pelas guerras napoleônicas. Quando Saint Hilaire inteirou-se dessa notícia, envidou todos os esforços para incluir-se na comitiva do novo ministro plenipotenciário. Era a grande oportunidade que lhe sorria, de realizar o seu sonho de aventuras científicas por terras tropicais.
Admitido no grupo, partiu de Brest a 1º de abril de 1816. Chegou ao Rio de Janeiro, segundo algumas fontes, aos 30 de maio do mesmo ano. Mas é o próprio Saint Hilaire quem registra a data de 1º de junho.
Em pouco tempo pôs-se em marcha para colimar os seus objetivos de cientista. Em seis anos, lutando contra todas as dificuldades e desconfortos, viajou pelas províncias do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Santa Catarina e Rio Grande do Sul; pelas nascentes do rio São Francisco e pelas margens do rio da Prata.
Segundo suas próprias palavras, teve como preocupações mais vivas fixar a natureza estranha ao ambiente europeu, a agricultura, as artes, o comércio, a geografia das plantas, a religião entre os brasileiros, a administração civil e judicial, os usos e costumes dos povos visitados, a vida das populações selvagens.
Ele foi a um só tempo botânico, geógrafo, geólogo, etnógrafo, sociólogo, etnólogo, folclorista, ecologista, zoólogo, acima de tudo naturalista e humanista.
Fez pião no Rio de Janeiro, para onde sempre retornava depois de meses de ausência. Era na Côrte que acumulava o material recolhido, analisado e cientificamente classificado. Ele mesmo dividiu suas excursões da seguinte maneira, o que nem sempre coincide com o trabalho dos editores: Minas Gerais, Norte Fluminense e Espírito Santo; Goiás, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e margens do Prata.
Mas antes de encetar suas grandes viagens pelo interior brasileiro, fez Saint Hilaire uma espécie de aclimatação ao seu novo habitat. Esteve em fins de 1816, na localidade de Ubá, à margem do rio Paraíba do Sul a convite do Comendador João Rodrigues de Almeida, ali afazendado.
O viajor não precisa datas, porem, em nota de pé de página contida na obra “Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais”, afirma ter sido dois meses antes de sua partida para Minas, cujo roteiro foi objeto desta obra citada, partida que se deu aos 7 de dezembro de 1816.
Não obstante, Saint Hilaire à pág. 35 do volume 126 da Coleção Brasiliana, que se ocupa justamente dessa sua primeira viagem às Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, indica princípios de dezembro, o marco temporal de sua estada em Ubá.
Ora, a menos que tenha havido um descuido gráfico, mesmo um engano do autor, quiçá traído pela memória, não poderia ter estado ele na fazenda de seu amigo João Rodrigues de Almeida, em princípios de dezembro de 1816 e ao mesmo tempo ter partido do Rio de Janeiro para a sua longa viagem, a 7 daquele mês, depois de ter passado cerca de trinta dias, como ele mesmo conta, em terras ubaenses.
De acordo pois com a aludida nota de pé de página (de nº 5) e tendo-se como certa a data de 7 de dezembro de 1816, como a da partida para Minas Gerais, pode-se arriscar que Saint Hilaire tenha estado em Ubá, entre setembro e novembro daquele ano.
Nessa pequena excursão, o botânico francês saiu do Rio de Janeiro por mar, entrou pelo rio Meriti, passou por Iguaçu e tomou o “caminho de terra”, explicando o porquê de seu nome:
“Dá-se-lhe este nome porque seguindo-o chega-se ao Rio de Janeiro, sem necessidade de atravessar a baía, enquanto que a grande estrada de Vila Rica, não vai além da vila do Porto da Estrela, que está situada ao fundo da baía, onde se é obrigado a recorrer a embarcações para chegar à capital”.
E, arrematando:
“Aqueles dentre os mineiros que temem o mar e, não são poucos, desviam-se da estrada principal para o lado do rio Paraíba e caem na estrada de terra…”.
De Iguaçu andou meia légua e chegou ao pé da serra, mais precisamente Benfica, ponto de parada obrigatória para os viandantes daquela rota. Nove léguas (algo em torno de 60 kms.) separavam Benfica do Rio de Janeiro.
Saint Hilaire subiu então a serra da Viúva, alcançou o Vale das Pedras e no terceiro dia de jornada estava no engenho do Pau Grande. Daí a Ubá, atual Andrade Pinto, na região de Paraíba do Sul, foi um quase nada.
Um mês depois retornava o botânico ao Rio de janeiro, fazendo o mesmo trajeto.
Estava o homem preparado para enfrentar, quiçá, os maiores desafios de sua longa e proveitosa existência.