A TECNOLOGIA DOS TRÓPICOS E A CEPAL

Julio Ambrozio, ex-Associado Titular, Cadeira n.º 30, Patrono – Monsenhor Francisco de Castro Abreu Bacelar

Darcy Ribeiro, em seu “Prefácio à Quarta Edição Venezuelana”, publicado na décima edição do Processo Civilizatório, Vozes, Petrópolis, 1991, narra, no primeiro parágrafo, o impacto que para ele teve o parecer editorial sobre esse livro. Lá pelas tantas, escrevia Darcy, que a raiva causada pela opinião de intelectual ledor de importante editora o salvara, pois desse modo surgiu o seu ímpeto de lutar contra todos aqueles que “… pensam que intelectual do mundo subdesenvolvido tem de ser subdesenvolvido também.”

Não está aqui mencionado Darcy Ribeiro por acaso. Muito da tecnologia solar brasileira – anunciada como real e paupável possibilidade pela Escola da biomassa – alcançaria verdadeira compreensão através de um processo civilizatório que enxergaria as revoluções tecnológicas como eficientes e fundamentais causas de formações sócio-culturais, cujas historicidades e concretudes estariam na idéia de civilização, no caso da biomassa, na idéia de civilização brasileira.

O caso, porém, é que a antropologia dialética de Darcy aqui surgiu através da específica lembrança desse prefácio venezuelano. Isso porque, folheando ao léu e pela primeira vez Dialética dos Trópicos, minha atenção se fixara em um parágrafo da página 154; pude ler ali uma espécie de informação ou conhecimento objetivo que a lógica da natureza determinaria a qualquer cultura: o aldeído acético (CH3 CHO) e o eteno (C2H H4) são os produtos básicos na produção de 70% da petroquímica; existem dois átomos de carbono em cada uma dessas substâncias produzidas a partir do petróleo, misturas de longas cadeias de hidrocarbonetos; o cracking ou ruptura é a forma para alcançar essa cadeia de dois átomos de carbono; o aldeído acético e o eteno, todavia, com facilidade seriam obtidos a partir do etanol (C2H5OH) – o álcool retirado da cana-de-açucar ou da mandioca, cuja estrutura é, igualmente, formada por dois átomos de carbono. Informa, ademais, Bautista Vidal, que a aplicação estimada de capital para realizar fábrica de eteno a partir do álcool etílico significa apenas 10% das inversões necessárias para retirar eteno do petróleo.

Como informação tão simples a qualquer aluno de segundo grau, transformar-se-ia em grave alerta ao país? Dessa maneira, a indignada e límpida frase de Darcy Ribeiro, reproduzida no primeiro parágrafo, muito responderia a esse paradoxo. Só mesmo o bovarismo colonial explicaria a dificuldade que a inteligência brasileira tem demonstrado em relação à Escola da biomassa.

Exatamente, Dialética dos Trópicos, não sendo livro de reclamações, ao contrário, desde o subtítulo é já, no Brasil, investigação que propõe transformar a biomassa em matéria obrigatória de economia politica. É convite para o debate com o planejamento cepalino. O que Bautista Vidal e Gilberto Vasconcellos procuram esboçar é que o desenvolvimentismo planejado de Raul Prebisch, Celso Furtado, Maria Conceição Tavares e outros, não se aproximou de uma crítica da tecnologia que, ao cabo, desobstruísse o impasse tecnológico, cuja dificuldade no desenvolvimentismo cepalino fora solucionada por cuidadoso planejamento.

Defensores do processo substitutivo de importação, Prebisch e Furtado, contudo, notaram que aí ocorria sistemática absorção do padrão tecnológico das regiões desenvolvidas, gerando, mesmo onde o processo industrial fora de elevado grau, a manutenção das enormes disparidades sócio-econômicas. O fato histórico do crescimento maior e mais rápido das forças produtivas dos países desenvolvidos dava à CEPAL substantivo argumento em favor da industrialização dos países subsenvolvidos: expansão dos benefícios da riqueza e do progresso técnico, desde que ocorresse política disciplinadora na entrada desses capitais e controle pelo Estado de setores estratégicos.

A difícil equação e o caráter um tanto emblemático da tecnologia no planejamento cepalino parece encontrar na Escola da biomassa seu desfecho ou solução. O que Dialética dos Trópicos nos diz é que a biomassa seria a vantagem comparativa dos trópicos, estribo energético da aceleração evolutiva, i.é, da genuina tecnologia emancipadora do Brasil, pois aquilo que foi o substrato da Revolução Industrial, difundida, aliás, de forma lenta e irregular a partir de seu histórico Centro, queda hoje de braços estendidos sobre a Terra; as fontes energéticas que fundamentaram o acelerado crescimento dos paises desenvolvidos, atualmente, alcançaram a sua exaustão: o carvão polui absolutamente e o petróleo, ademais, tem a sua morte anunciada para duas ou três décadas.

Definida a biomassa pelo geólogo mineiro, Marcelo Guimarães de Mello, como a energia advinda das plantas verdes, algumas de grande potencial produtivo nos trópicos – a cana, a mandioca e o dendê -, em Dialética dos Trópicos também a biomassa constituir-se-ia como encruzilhada: cumprirá, de forma ainda mais acabada, idêntico papel que o ouro colonial brasileiro teve na Revolução Industrial? Ou, afirmando-se como efetiva vantagem comparativa, a energética biomassa possibilitará a emancipação tecnológica, base fundamental para o estabelecimento definitivo da mestiça civilização brasileira?

Desejando lembrar, para além da moeda, que a economia e sua história estão umbilicalmente ligadas à natureza e à tecnologia apropriada que daria utilidade a esse ambiente natural, Bautista Vidal e Gilberto Vasconcellos, sob o viés tecnológico, realizaram o conceito de desenvolvimento da Escola da biomassa. Retomando ainda Darcy Ribeiro, pois os brasileiros não são povo-testemunho refletindo o seu passado, mas povo-novo saindo em busca de original tecnologia dos trópicos.