Corrêas, janeiro de 1928. No Hotel D. Pedro, instalado no velho casarão do Padre Corrêa, dois grandes intelectuais brasileiros, estão alí hospedados em busca de tranqüilidade e refrigério. São eles, o maranhense Humberto de Campos, membro da Academia Brasileira de Letras, dono de enorme bagagem literária e o sergipano Manoel José Bonfim, historiador, pedagogo e sociólogo, com incursões pelo americanismo e pelas raízes nacionais.
Corrêas dos anos vinte, não era o arrabalde pretencioso e acanalhado de hoje, onde pedestres e veículos de toda a espécie disputam a exiguidade dos logradouros e a única ponte que liga a povoação à estrada União Indústria.
Em 1928, aquilo era um lugar de repouso e de cura, com suas chácaras aprazíveis, seu comércio modesto, sua população rarefeita, seu silêncio profundo, apenas cortado pelo ruido do trem do Norte, que ligava Petrópolis a Três Rios e a São José do Rio Preto.
Antonio Machado, que fora comerciante de fumo no Rio de Janeiro, estabelecera na estrada setecentista do Padre Antonio Thomaz de Aquino Corrêa, o hotel D. Pedro, que depois transformar-se-ia em sanatório, dada a grande procura do clima de Corrêas pelos tuberculosos, sempre esperançosos de cura, numa época em que esta somente se operava por milagre.
Pois foi justamente nesse hotel D. Pedro, que Humberto de Campos e Manoel Bonfim, trocaram figurinhas nos dias 16 e 17 de janeiro de 1928.
Humberto Campos, nascido no Maranhão em 1886, era já autor consagrado, com vasta bibliografia dos contos humorísticos à crítica literária.
Ademais, ele era dado a registrar suas memórias, genêro aliás que o haveria de consagrar post mortem, com a divulgação do seu “Diário Secreto”.
Foi na primeira série de sua “Crítica”, livro de 1933, que encontrei o registro de sua tertúlia com Manuel Bonfim, na aprazibilidade coreense, num ensaio sob o título “Nossa Formação Étnica”.
E Humberto Campos começa assim o seu discurso:
“Consultando o meu diário inédito, relativo ao ano de 1928, encontro essas anotações:
Segunda feira, 16 de janeiro – Entre os hóspedes do hotel ( Hotel D. Pedro em Corrêas), um há tão bisonho quanto eu, mas que toma a iniciativa de aproximar-se de mim. É Manuel Bonfim, sociólogo e historiador, autor d’América Latina, obra cuja documentação histórica me espantou, quando há vinte e dois anos, adolescente ainda, alí no interior do Ceará.
Humberto de Campos passa então a descrever o pedagogo e historiador sergipano, nascido em Aracajú em 1868:
“De estatura mediana, apresenta a estrutura angulosa, a ossatura sólida dos nossos nortistas do interior. Bigode branco, aparado em escova sobre a boca, parece Ter tido abundante cabeleira, hoje rarefeita e que toma o tom amarelo sujo dos inivíduos louros que envelhecem. O rosto largo, avermelhado, denuncia o temperamento sanguíneo, o espírito voluntarioso em que se misturam orgulho e desconfiança. Veste-se sem apuro, mas com limpeza. É médico, mas não exerce a clínica. Foi, há muitos anos, diretor da Instrução Pública no Distrito Federal.”
Tal retrato falado de Manoel Bonfim, ao qual poder-se-ia agregar algumas outras informações: foi Deputado Federal, diretor da Escola Normal do Rio de Janeiro, tendo plasmado uma obra enfeixada em alguns volumes magistrais, de incontestável afirmação do brasileiro, como elemento potencialmente capaz de traçar o seu próprio destino e de encontrar os caminhos do progresso a partir da valorização do seu meio e da sua cultura.
Humberto de Campos foi por assim dizer assaltado pelo verbo facial e fascinante do sergipano, tanto que uma hora de conversa, Bonfim falou cinqüenta minutos e o maranhense apenas dez. A certa altura do papo, ocorreu a Humberto a seguinte pergunta:
– “Por que este homem não é da Academia?”
A resposta é muita simples: assim como há muito mais louco fora do manicômio do que dentro dele, há muito maior quantidade de intelectuais de verdade fora da Casa Machado de Assis, do que os quarenta membro que lá tomam assento.
Na terça-feira, 17 de janeiro, Humberto registrava em seu diário, o prosseguimento daquela tertúlia, em que as idéias sobrepairavam a iniquidade do quotidiano vulgar e rotineiro.
À sombra das parreiras, que então guarneciam a testada de algumas chácaras correnses, sub tegmine, como escreva o próprio Humberto, Bonfim expandira-se um pouco mais sobre suas teorias a respeito da nossa formação e do nosso desenvolvimento. Grafara Humberto de Campos:
“Manoel Bonfim tem idéias especiais e apaixonadas sobre a nossa formação étnica e da nação como entidade política. Na sua opinião, o esforço português para a colonização do Brasil foi nulo, insignificante. A atuação da metrópole circunscreveu-se exclusivamente à exploração da colônia, sem dar-lhe, em paga, melhoramentos senão correspondentes ao proveito usufruido, ao mesmo daqueles que a previdência aconselha a quem pretende conservar uma fácil fonte de renda.
E faz a apologia do índio, do aborígene, da sua eficiência na constituição da nacionalidade que se vai formar e, conclui:
– Uma raça decadente, inútil, daria esses grandes capitães que se chamaram Martim Afonso (Arariboia) e Felipe Camarão (Potí), tão temidos e respeitados por franceses e holandeses e que causaram espanto aos próprios portugueses, seus aliados.”
– Humberto de Campos, trouxe assim, uma síntese do pensamento de Manoel Bonfim na valorização do elemento autóctone, ao tempo em que pilhou i sergipano terminando em Corrêas seu novo livro “O Brasil na América”, que apareceu nas livrarias pouco tempo depois, e que foi justamente alvo das considerações humbertistas no ensaio “A Nossa Formação Étnica”, inserido na primeira série de “Crítica”.
Manoel Bonfim, trabalhava numa linha muito próxima daquela que pautara a obra de um contemporâneo seu, sociólogo tão importante quanto ele – Alberto Torres. Eram ambos, dois grandes teóricos do chamado nacionalismo, ainda não contaminado por ideologias espúrias, que lhe corromperiam o verdadeiro sentido.
Vale uma análise comparativa da obra nacionalista desses dois gigantes da cultura brasileira. É o que farei numa outra altura.