TRATADO DE PETRÓPOLIS – 100 ANOS – AS LUTAS PELA POSSE DO ACRE
Ivo de Albuquerque, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 39 – Patrono Walter João Bretz, falecido
I – ANTECEDENTES HISTÓRICOS
A luta armada que se travou pela posse do Acre e da qual resultou a assinatura do Tratado de Petrópolis em 17 de novembro de 1903 pelos governos do Brasil e da Bolívia, fato histórico de extraordinária relevância que concretizou a incorporação das terras, hoje acreanas, ao território de nosso País, não constituiu,como muitos julgam, um conflito entre as duas Nações. Em verdade, representou ela, em etapas sucessivas durante o período de abril de 1899 a janeiro de 1903, a manifestação patriótica dos brasileiros que, oriundos de diversos pontos do território nacional, principalmente dos Estados do Ceará e Maranhão, pegaram em armas contra a pretendida cessão, pelo governo da Bolívia, a grupos de capitalistas estrangeiros – alemães, ingleses e norte-americanos – de imensa extensão de terras por eles ocupadas e exploradas desde meados do Século XIX e que eram,já objeto de disputa pela Bolívia e pelo Peru .
Os componentes da crise então verificada tinham raízes na indefinição de limites entre o Brasil e a Bolívia, além da prevalência física dos brasileiros na área contestada.
Em torno desses antecedentes, pode-se relatar os acontecimentos em conformidade com a seguinte cronologia:
1 . A descoberta do Rio Aquiri ou Acre em 1861 por um caboclo brasileiro ensejou a abertura de novas fronteiras para a extração do látex, já transformado em matéria prima para a promissora indústria da borracha, com utilização cada vez mais intensa pela produção de bens ligados à moda, aos acessórios de vestuário, ao esporte e, sobretudo, à expansão da indústria automobilística, acelerada pelo processo de vulcanização e pela invenção do pneumático.
2 . Em março de 1867, por insistência da Bolívia, foi firmado com o Brasil o Tratado de Ayacucho, ajustando a questão de limites que apresentava, ainda, controvérsias, em face de prescrições constantes dos tratados anteriores de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777, mas que assegurava àquele País andino a posse de grande parte do território que hoje integra o Estado do Acre. A diplomacia brasileira, no entanto, introduziu no referido tratado a disposição de “reconhecer o UTI POSSIDETIS como base para determinação da fronteira entre os seus respectivos territórios” .
3 . Em setembro de 1898 é firmado o Protocolo pelo qual o Governo brasileiro, baseado em relatórios da 2ª Comissão de Demarcação da Fronteira, reconhecia o território, até então sujeito a discussões, como inquestionavelmente boliviano. Em conseqüência, a Bolívia toma posse oficialmente do território, funda sua primeira cidade (Santo Alonso) na região e ali instala uma alfândega.
4 . Os decretos do delegado nacional boliviano regulando a navegação dos rios, tornados abertos “a todas as Nações que têm amizade com a Bolívia”, a taxação de impostos sobre a importação em geral, além dos atos de prepotência que geram hostilidades e revolta entre os acreanos, e que passam, então, a conspirar, considerando os bolivianos como usurpadores.
5 . Em fins de abril de 1899, o advogado José Carvalho, à frente de um grupo de doze seringueiros, “em nome do povo deste rio e do povo brasileiro”, intima o delegado nacional boliviano a deixar a cidade, “por não mais tolerar o governo que V Excia representa”.
II – 1ª INSURREIÇÃO
Ao mesmo tempo, o Governo boliviano celebrava em Londres um acordo de comércio e exportação de borracha, através de um Contrato de Arrendamento do Território de Colônias com um Sindicato de capitalistas estrangeiros denominado Bolivian Syndicate, presidido pelo filho do então Presidente dos Estados Unidos da América.
O teor do documento fora confiado ao espanhol Luiz Galvez Rodrigues de Arias, redator do Jornal “Província do Pará” e funcionário do Consulado boliviano em Belém, a fim de ser vertido para o idioma inglês. O assunto é por ele levado, em sigilo, ao conhecimento do Governador Ramalho Junior, do Amazonas, juntamente com a revelação de seu intento de promover a independência do Acre.
O Governador concorda com a idéia e passa a apoiá-la clandestinamente, fornecendo recursos financeiros, armas, munições, provisões e até um navio especialmente fretado e equipado com um canhão e uma guarnição de vinte homens.
A 14 de julho de 1899, data de comemoração do 110º aniversário da Revolução Francesa, nascia na localidade boliviana de Puerto Alonso o Estado Independente do Acre, organizado sob a forma republicana. Seu Presidente, Luiz Galvez, é recebido com efusão por trabalhadores e patrões, todos dispostos a lutar contra o que consideravam “uma intromissão da Bolívia”. Muda o nome da localidade para Porto Acre; cria a Bandeira do novo Estado soberano; nomeia ministros; mobiliza uma valente milícia; baixa decretos importantes; envia despachos a todos os paises da Europa e designa representantes diplomáticos.
Destronado por um de seus súditos em dezembro daquele mesmo ano, reassumiu o poder dois meses após. O Governo brasileiro, no entanto, não reconheceu os direitos do Estado Independente, por considerar o Acre território boliviano. Assim, enviou uma flotilha composta por duas belonaves com a missão de depor Luiz Galvez, o que foi feito em 15 de março de 1900, sendo o mesmo conduzido preso para Recife, de onde retirou-se para a Europa, não mais se tendo notícias a seu respeito.
III – 2ª INSURREIÇÃO
Afastado Luiz Galvez, o domínio boliviano se consolida, sob a garantia de uma poderosa expedição militar que chegou ao Acre em outubro de 1900, tendo à frente o Vice-Presidente da República, NOMEADO Delegado Extraordinário do Acre, e sob o Comando do Ministro da Guerra. Persistia, no entanto, entre os brasileiros, a chama revolucionária, rio abaixo e até Manaus, onde se conjurava abertamente sob a liderança do engenheiro Orlando Correa Lopes, gaúcho impetuoso, eloqüente, que envolvia com suas pregações o próprio Governador do Estado Silvério Nery, o qual, veladamente, se dispôs a apoiar o novo movimento revolucionário surgido, denominado “Expedição Floriano Peixoto”.
O grupo de conspiradores é integrado por jornalistas, advogados, políticos, literatos e homens de sociedade do Amazonas e do Pará, totalizando cerca de cento e trinta homens sem nenhuma experiência militar, praticamente “inocentes em matéria bélica e estratégica”, à exceção de um ex-aluno da Escola Militar que participara da Campanha de Canudos e um ex-oficial de Marinha.
A liderança do grupo localiza e tenta, em vão, arregimentar o agrimensor Plácido de Castro, cuja fama de herói da Revolução Federalista a todos entusiasma e anima, mas que, para frustração geral, encontra-se, na ocasião, em precárias condições de saúde. Após a saída de Orlando Gomes e seus companheiros de aventura, Plácido a eles se refere como “Os Poetas”, expressão que passa a ser doravante utilizada para denominar a insurreição e seus participantes.
Após a aclamação de Rodrigo de Carvalho como Presidente do Estado Independente do Acre em 02 de dezembro na cidade de Lábrea, e sob o Comando do jornalista Orlando Gomes, a expedição se dirige para Caquetá, último ponto a jusante da linha divisória entre o território ocupado e o Estado do Amazonas, onde se encontravam aquartelados os revolucionários remanescentes dos movimentos anteriores, cerca de 20 a 30 homens armados que ainda efetuavam incursões esparsas contra as tropas bolivianas . Agindo de forma precipitada, os Poetas se lançam no dia 24 ao ataque contra as posições fortificadas de Puerto Alonso, sendo desbaratados, em menos de três horas de combate, frente ao poderoso contingente de tropas adversárias, em cujo poder deixaram até o canhão doado pelo Governador Silvério Nery.
O malogro de mais essa tentativa e a ruptura do bloqueio que vinha sendo imposto às tropas bolivianas possibilitaram a estas assegurar uma nova fase de consolidação da soberania de seu País sobre o Acre, fundamentada no direito gerado pelo Tratado de Ayacucho e, agora, pela imposição das armas.
A ação revolucionária desenvolvida pelo “Grupo dos Poetas” serviu, no entanto, para despertar a atenção nacional sobre a dramática situação em que se encontravam milhares de brasileiros, ocupando e explorando economicamente terras longínquas da floresta amazônica, disputando-as a ferro e fogo com um país vizinho apoiado por grupos estrangeiros nelas interessados.
IV – 3ª INSURREIÇÃO
Em abril de 1902 chega a Porto Acre o cidadão boliviano Lino Romero, especialmente designado por seu Governo para efetuar a entrega da região aos delegados do Bolivian Syndicate, conforme convênio de arrendamento firmado em Londres, a 11 de junho do ano anterior. A repercussão desses atos no ânimo dos acreanos não se fez tardar e já em 2 de agosto, após reunião dos próceres revolucionários em Caquetá, foi Plácido de Castro aclamado Comandante-em-Chefe das forças a serem organizadas para o combate aos estrangeiros e, de imediato, à frente de trinta e três homens, parte para Xapuri, onde depõe as autoridades bolivianas, proclama a soberania política e institui o novo País sob o nome de Estado Independente do Acre.
No período de 25 de agosto de 1902 a 15 de janeiro de 1903 foram travados renhidos combates nas regiões de Santa Cruz, Volta da Empresa, Igarapé da Bahia, Montevidéu, Bom Destino, Santa Rosa e Costa Rica, culminando com o sítio das tropas e civis bolivianos armados, na região de Porto Acre, sede da Delegacia Nacional, pelos oitocentos homens que àquela altura compunham as forças de Plácido de Castro.
A Bolívia, em revide, organiza uma expedição militar de grande vulto, sob o Comando do próprio Presidente da República, General Juan Manuel Pando, para combater as forças de Plácido de Castro. Em face da repercussão nacional e internacional da vitória das referidas forças, o novo Governo brasileiro do Dr Rodrigues Alves, por seu Chanceler Barão do Rio Branco, cientificou o Governo de La Paz que o Brasil julgava litigiosa a região. Isso significava que a solução deveria ser buscada através de negociações. Em comunicado ao representante brasileiro acreditado junto ao Governo da Bolívia, informou, ainda o Chanceler Rio Branco, estar o Brasil interessado em adquirir todo o território em litígio, mediante compensações, e que o interesse do País consistia em proteger milhares de brasileiros habitantes daquela região por eles desbravada.
Foi, então, enviada uma força do Exército Brasileiro com cerca de três mil homens sob o Comando do General de Divisão Olympio da Silveira, para proceder a ocupação da zona litigiosa no Acre Setentrional, enquanto que ao Governador Plácido de Castro caberia o território do Acre Meridional. A intenção do Governo, conforme acima dito, era prestar socorro aos acreanos diante da reação boliviana e preservar a autoridade e a glória do Comandante vitorioso e já consagrado como herói nacional.
Diante dos sucessos dos acreanos, os integrantes da comitiva do Bolivian Syndicate que vinham assumir o governo da região regressaram apressadamente para Belém, de onde se retiraram de volta para seus paises. O Barão do Rio Branco entrou em entendimentos diplomáticos com os organizadores do mesmo, que acabaram por concordar com a rescisão do contrato mediante uma compensação financeira. Cabe ressaltar, a respeito, a apreciação retrospectiva do eminente historiador Dr. Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, segundo a qual “… é lícito afirmar que a enérgica reação do Brasil contra a instalação do Bolivian Syndicate foi decisiva na preservação da Amazônia. Os exemplos ocorridos na África, onde contratos similares haviam sido assinados, resultaram na brutal destruição do meio ambiente, além de uma posterior transformação da região objeto do contrato em colônia.”
Em 21 de março é assinado em La Paz um “modus vivendi” entre o Brasil e a Bolívia, para a suspensão das hostilidades no Acre até que fossem resolvidas as questões de limites. O conhecimento desse Acordo, no entanto, somente chegou até Plácido de Castro após haver ele transferido, em meados de abril, a sede de seu Governo para Xapuri e a Alfândega para Capatará, em face da aproximação das tropas do Presidente General Pando. Travaram-se, ainda, pesados combates na região de Puerto Rico, onde os bolivianos foram isolados e impedidos de avançar ou recuar. A notícia da celebração do acordo em La Paz chegou no momento em que o grosso das forças acreanas se preparava para marchar contra os bolivianos em Gironda.
Cessados os combates, iniciam-se as negociações diplomáticas e, por fim, a Bolívia concorda em ceder ao Brasil a região do Acre, mediante indenizações de dois milhões de libras esterlinas, uma estrada de ferro ligando os dois paises e um porto no Rio Madeira, além de duas áreas fronteiriças desabitadas do Estado de Mato Grosso.
A 17 de novembro de 1903 foi firmado o Tratado de Petrópolis, de extraordinária importância para os Acordos e para a regularização dos limites das terras acreanas e sua anexação ao território brasileiro.