A VILEGIATURA COMO GÊNERO DIVERSO DO TURISMO

Júlio Ambrozio, associado titular, cadeira n.° 30, patrono Mons. Francisco de Castro Abreu Bacelar

De imediato, seria necessário observar que a viagem – o deslocamento de um ponto a outro relativamente distante – atravessa a história. A viagem foi comercial – e esta se mantém como uma das formas básicas de deslocamento: os fenícios foram os primeiros a romperem com a tradição do comércio terrestre, navegaram por todo o Mediterrâneo, fundando feitorias e estações marítimas de Beirute, Aca, Jaffa, passando pelas ilhas de Malta, Lampeduza, Gozo, Pantelaria até Alcácer do Sal em terras do rio Sado lusitano (1); os espanhóis viajaram para, violentamente, despojarem a América do Sul e Central; a Liga Hanseática fundara em toda a Europa norte e oriental escritórios e, sob influxo do Capitalismo comercial, cidades como Leipzig e Hannover tornaram-se lugares de referência para os caixeiros viajantes do mundo; até os índios ribeirinhos da bacia amazônica do século XVI dão evidências da viagem de longa distância comercial, ou de troca, interrompida pela chegada do europeu (2); os próprios gaúchos carregam no nome a sua origem errante: gaudério, tipo social afeito à montaria, viajante fronteiriço, até o século XIX, à procura do gado alçado e dos ganhos de contrabando nas duas áreas platinas e no antigo Continente de São Pedro do Rio Grande.

(1) Cf. CAMINHA, João Carlos. História Marítima, Biblioteca do Exército, RJ, 1980, pp. 13-17.

(2) Cf. CARVAJAL, Frei Gaspar de. Relatório do novo descobrimento do famoso rio grande descoberto pelo Capitão Francisco de Orellana, Escritta editorial / Embajada de España, bilíngüe, SP,1992. Cf. também PORRO, Antônio. As Crônicas do Rio Amazonas, notas etno-históricas sobre as antigas populações indígenas da Amazônia, Vozes, Petrópolis, 1993.

É de se notar ademais que, toda a vida, os exércitos viajaram: o Grande Exército napoleônico da Campanha de 1812 atravessou o rio Niemen – fronteira dos antigos Grão-Ducado de Varsóvia e da Prússia Oriental com a Rússia – a caminho de Moscou com 420.000 homens, deslocando-se, entre a marcha ofensiva e a fuga por quase dois mil quilômetros (3); a Coluna Prestes viajou cerca de 25.000 quilômetros pelo interior do Brasil, de São Borja até o seu exílio em Santa Cruz, na Bolívia; os Farroupilhas deslocaram-se pelos campos do sul rio-grandense, guerreando o Exército Imperial.

(3) Cf. CLAUSEWITZ, Carl Von. A Campanha de 1812 na Rússia, Martins Fontes, RJ, 1994. Cf. também: TOLSTOI, Leão. Guerra e Paz, ed. Nova Aguilar, RJ, 1993.

A viagem educativa, igualmente, tem a sua história: a jovem nobreza romana viajou para a Grécia em busca do conhecimento; Goethe foi para o Sul, desejando apreender o acervo cultural da Itália (4). Deslocou-se o Romantismo procurando compreender a sua própria história e o seu mundo: Heinrich Von Kleist, por exemplo, “[…] foge para a França, depois para a Itália. Encanta-se com a Suíça […]” (5), movimentara-se pela Europa à procura da viagem que abriria a porta de retorno ao paraíso.

(4) Cf. GOETHE, J.W. Viagem à Itália, 1786-1788, Cia. das Letras, SP, 1999.

(5) BORNHEIM, Gerd A. “Kleist e a Condição Romântica”, in O Sentido e a Máscara, ed. Perspectiva, SP, 1975.

O que os parágrafos anteriores procuram deixar evidente é que a viagem guarda específico sentido de movimento, de marcha ou de caráter móvel do qual se apropriaram o comércio, a educação, a guerra…a vilegiatura (6). Diga-se como passo importante: tomaram como sua a viagem sem transformá-la em um fim voltado para ela mesma. Sob esse aspecto, afastam-se a viagem comercial, religiosa, educacional, o deslocamento bélico… e a própria vilegiatura do turismo, pois este não é uma simples modernização (7) – por exemplo – da velha villeggiatura (8), já que a viagem turística porta cariz despregado de conteúdo exterior. Esta é a raiz. Sendo, a propósito, contra-senso, antinomia ou paradoxo aceitar a existência do “turismo de negócio”, uma vez que o fortuito uso turístico em seu interior é secundário e sequer arranha eventuais causas exteriores que motivariam a viagem mercantil (9), portanto, mantendo-se esta e outros deslocamentos distantes do moderno e específico caráter que o turismo trouxe à viagem. Refiro-me ao círculo ampliado da mercadoria, do consumo e da reprodução da capacidade de trabalho gerado pelo Capital, transformando a viagem em fim ensimesmado (10), voltada, como mercadoria – repetindo -, para dentro de si mesma.

(6) Espaço/tempo de recreio, de cura, de ócio, passado no campo distante da cidade.

(7) Lucrécia D’Aléssio Ferrara, aliás, guardaria outra compreensão. Diferentemente desta minha perspectiva, Ferrara escreve: “A essa altura, o turismo atual já é uma versão contemporânea da antiga villegiatura.” Poder-se-ia dizer que no interior do artigo de Lucrécia Ferrara a diferença turismo-vilegiatura está em graus, enquanto neste trabalho, em gênero. [NdA]. Cf. FERRARA, Lucrécia D’Aléssio. “O Turismo dos Deslocamentos Virtuais”. In: CRUZ, Rita de Cássia Ariza da. (Org.). Turismo: Espaço, paisagem e cultura, Hucitec, SP, 1996, p.20.

(8) Etimologia italiana, villeggiatura, nesta forma, já se encontrava antes de 1729. Em português, villegiatura, nesta forma, entrou em 1899. Cf. HOUAISS, A. Dicionário da Língua Portuguesa, ed. Objetiva, RJ, 2001.

(9) A habitual lembrança de utilização de espaços turísticos pela viagem comercial como prova da existência do turismo de negócio, não toca o substantivo do turismo e nem o da viagem. [NdA].

(10) Cf. HESSE, Reinhard. Viajar como Fuga para a Afirmação: Aspectos do Turismo em Massa nas Sociedades Altamente Industrializadas, mimeo., s/d.

Não é à-toa, além disso, que a primeira agência de viagens nasce inglesa e no século XIX, 1845. Variante do antigo vocábulo tour, a palavra turismo nasceria na Inglaterra em 1811 (11). Não é também detalhe informar que a agência Cook apenas pode organizar deslocamentos turísticos para a burguesia britânica, uma vez que somente após a Segunda Guerra Mundial, os trabalhadores dos países altamente industrializados foram incorporados, como sócios menores, aos benefícios do aumento da produtividade do trabalho, dentre esses, a redução da jornada de trabalho gerando maior tempo livre (12).

(11) Cf. HOUAISS. Dicionário da Língua Portuguesa, ed. Objetiva, RJ, 2001.

(12) É de se perguntar, utilizando-se de uma citação de Ricardo Musse, se o desmonte do ordenamento Keynesiano levado a cabo pela financeirização da economia, gerando hoje, entre muitas conseqüências, “[…] a passagem de uma sociedade de pleno emprego e de ampliação do tempo livre para uma sociedade em que prevalece a ameaça constante de desemprego […] e a redução efetiva do tempo livre […]”, não emparedaria o viés populacional do turismo que, então, direcionar-se-ia cada vez mais para a produção do espaço como raridade, cujo exemplo seria o resort. Cf. MUSSE, Ricardo. “Fenomenologia da Reificação: Adorno e o Lazer”. In: BRUHNS, Heloisa Turini (org.). Lazer e Ciências sociais, diálogos pertinentes, Chronos, SP. 2002, p.179.
Sendo pertinente essa citação de Musse, é de se notar ademais que a origem propriamente da expropriação do tempo livre estaria vinculada à produção capitalista; sob esse viés, a redução do tempo livre ligada à economia financeirizada seria um capítulo no interior da história da expropriação do ócio empreendida pelo Capitalismo. O ócio antigo e medieval não estava separado do processo de produção pré-capitalista. Embora fosse a aristocracia ou a nobreza quem usufruía integramente do tempo livre, a atividade produtiva ou remunerada pré-capitalista não estava separada do ócio; ao inverso, amalgamada a essa atividade vivia o ócio. Se bem que existindo este processo pré-capitalista com níveis acanhados de força produtiva, gerando muitas vezes graves crises de oferta de alimentos, o caso era que esse processo produtivo não guardava um fim em si mesmo; “[…] o objetivo [dessa] produção, mesmo com meios modestos […], [era] prazer e ócio.” (KURZ), guardando portanto proximidade com o tempo e o ritmo da vida humana. Se, por exemplo, o tempo de trabalho formalmente durava longas horas, esse período não era cerrado de constrangimentos como o tempo produtivo no Capitalismo, pois essas longas horas de jornada estavam imersas de grandes paradas, por exemplo, para refeições e descanso, muitas vezes, comunitários. Dessa forma, o tempo produtivo pré-capitalista, sendo menos intenso, sem pressa, por conseguinte, menos concentrado, portava em suas entranhas um tempo de ócio bem mais alargado, inteiro e generoso ¾ tempo de ócio que é necessário distinguir do tempo livre do Capitalismo, visto que este é o tempo de restauração da força de trabalho e o tempo instrumental para o consumo de mercadorias, no caso, mercadorias turísticas. Sobre este ponto, ver: KURZ, R. A Expropriação do Tempo, http://obeco.planetaclix.pt/rkurz29.htm, 27/11/2006, 13:26.

O turismo, então, não frustrou a sua origem, realizando-se – verdadeiramente – como mercadoria deambulatória(13), quase ia dizendo, turismo de massa produzindo lugares sem espessura espacial (14), valendo apenas o seu importante papel de devolução da força ao trabalhador (15).

(13) Diga-se de passagem, que o turismo expulsou uma dimensão do humano ao excluir o gênero que umbilicalmente viveu com a viagem – o épico, o deslocamento como travessia – cuja presença deram testemunhos a Odisséia, Os Lusíadas e Martín Fierro. Transformando a viagem em mercadoria contribuiu o turismo para a expansão do gênero burguês: o drama, misto de tragédia e comédia. Tragédia pela escravidão ao dinheiro e comédia pela imitação de homens menores. A viagem, assim, foi extorquida daquela feição genuína que dava ao homem a ventura de colocar-se à prova diante do mundo.

(14) Refiro-me a um espaço que não possibilita definição a partir de suas relações, história e identidade, isto é, o não-lugar. Cf. AUGÉ, Marc. Não-Lugares, ed. Papirus, SP, 1994. Cf. também CARLOS, A. F. A. “O Turismo e a Produção do Não-Lugar”. In: CRUZ, Rita de Cássia Ariza da. (org.). Turismo: Espaço, Paisagem e cultura, Hucitec, SP, 1996, pp. 25-37.

(15) Em Ludwig II, réquiem para um rei virgem, Syberberg, o diretor desse filme alemão de 1972, visualiza a “comemoração” dos turistas, que não apreendem o castelo e o rei agônico, símbolo da queda da aristocracia alemã, porque viajam engendrando a confirmação de seu mundo.

O turismo, portanto, não é mera atualização da vilegiatura. Denominar de turismo o deslocamento anterior à constituição desse nome é incorreto, pois além de não existir como linguagem ou pensamento até o século XIX, o turismo, com foi dito, é prática social acoplada à produção de mercadoria, designando a conversão da viagem a um fim em si. Sob esse último aspecto, aliás, poder-se-ia escrever que à expressão “turismo de massa”, está intrínseco um pleonasmo. O turismo é de massa ou significa outra coisa; pois é de massa não apenas devido às multidões de indivíduos que envolve, mas porque existe como “produção em massa” de espaço-mercadoria. Cada dia mais, porém, a apropriação privada do espaço limita o direito ao uso (16). Estribado na circulação de mercadorias realizada pelo capital, o turismo é o alargamento do consumo de espaço que pretende a ampliação de acumulação do capital, aliás, sendo irrelevante o ecoturismo como eventual exemplo de reação a esse estado de coisas, pois aparecendo o seu espaço de uso como simples beleza ou importância natural, de fato, seu valor resulta das relações sociais inerentes ao espaço-mercadoria (17).

(16) Cf. CARLOS, Ana Fani A. “Novas Contradições do Espaço”. In: SEABRA, Odette C. de Lima (org.). O Espaço no fim de Século, a nova raridade, Contexto, SP, 2001, pp. 62-80.

(17) O ecoturismo “[…] Carrega em si a própria contradição. De um lado, deriva de um discurso ecológico apresentado como crítica à modernidade ao se opor ao mundo urbano-industrial. Por outro, é uma prática turística inserida na lógica dos mercados.” SANTANA, Paola Verri. “A Mercadoria Verde: a Natureza”. In: SEABRA, Odette C. de Lima (org.), op. cit., p. 178.

Escritos “liberais” (18) enxergariam paradoxos entre o turismo que degrada e o ecoturismo que preserva, porém, é também intrínseco à prática ecoturística o domínio da natureza pela racionalidade técnica ou funcional, “[…] domínio que vai até a destruição do natural, ao mesmo tempo mentalmente, socialmente, fisicamente.” (19) Conseqüentemente, o pretenso esforço de aproximação e compreensão da natureza pelo ecoturismo limita-se a enxergá-la como acontecimento episódico – um fato diverso e sem valor inerente -, incapaz de conciliar o homem e a natureza (20).

(18) Refiro-me à visão que aceitaria o turismo sem crítica radical, questionando apenas relativamente o arranjo turístico-espacial, acreditando ser possível o planejamento ou a orientação dessa prática de deslocamento de recreio para a realização de espaços com espessura social. Menos conceitual e mais empírica, essa ótica quereria afirmar a especificidade de cada caso turístico-espacial, desse modo, buscando afastar a “crítica essencial” de alguns e o “otimismo vazio” de outros. Por exemplo, HALL, C. Michael. “Política e planejamento Turístico: o Imperativo sustentável”, in Planejamento turístico, políticas, processos e planejamentos, Contexto, pp.17-35.

(19) LEFEBVRE, H. “O Espaço e o Estado”, in A Respeito do Estado, T.V, Labur-USP, mimeo., SP, s/d, p.8.

(20) Cf. HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão, editorial Labor do Brasil, RJ, 1976.

Conquanto o turismo possua contraparentesco com a vilegiatura naquilo que conserva de temporada de deslocamento e recreio, a própria origem do vocábulo vilegiatura, derivado de villa – a casa italiana de campo ou mesmo sinônimo de povoação -, já noticia a diferença. Foi a renascença italiana que recuperou o conceito romano de villa como villa de recreio ou de ócio, por exemplo: Villa Medici, Villa d’Éste. Não se encontra, em latim, o preciso vocábulo vilegiatura ou alguma forma próxima que tivesse gerado em português, francês ou italiano essa palavra. Encontra-se villa significando casa ou povoamento, pois rusticatio – designando estada ou permanência no campo, vida de campo ou morada no campo durante a estação calmosa – é a forma latina equivalente a vilegiatura (Port.), villégiature (Fr.), villeggiatura (It.) (21). A forma latina rusticatio seria o testemunho filológico da existência, em Roma, de villas para temporada de recreio passada nos campos. Portanto, foi provavelmente no Renascimento que surgiu a forma vilegiatura. Conseqüente à recuperação do mundo greco-romano, dir-se-ia que o homem renascentista fez nascer o termo que fora mesmo um filológico instrumento

(21) Cf. FORCELLINI, Aegidio et alii. Lexicon Totius Latinitatis, tomo IV, Typis Seminarii, Patavii, MCMXXXX. Cf. também CALONGHI, Ferruccio. Dizionario Latino-Italiano, Rosenberg & Sellier, 3ª ed. , vol.. I, Torino, 1969. Cf. igualmente TORRINHA, Francisco. Dicionário Português-Latino, Editorial Domingos Barreira, 2ªed, Porto, s/d. Cf. BADELLINO, Oreste. Dizionario Italiano-Latino, Rosenber & Sellier, Torino, 1966.

De origem aristocrática, portanto despregada do caráter burguês do turismo, a vilegiatura, porém, atualmente permanece diminuída na construção da segunda casa da burguesia e de parte da classe média em áreas próximas, ou nem tanto (22), às grandes cidades. Ela hoje ainda existe, claro, mitigada de seu sentido original e amalgamada com o próprio turismo: de fato, incluída a vilegiatura no interior da economia dos espaços turísticos (23), a construção da segunda residência, doravante, unir-se-ia à especulação turística imobiliária; derivada em linha reta da villa de ócio dos antigos romanos, a vilegiatura foi diminuída de seu senso de origem.

(22) Nem tanto, certamente, devido ao aumento da velocidade nos transportes propiciado pelo petróleo e sua tecnologia.

(23) Cf. SANCHEZ, Joan Eugeni. “La Dinamica Territorializadora de una Actividad Productiva”, in Espacio, Economia y Sociedad, Siglo Ventiuno de España editores, Madrid, 1991. pp.216-248. Lê-se nas páginas 217-218 que falar de turismo como a utilização temporal de um espaço ligado às coisas do ócio e diverso do espaço habitual de trabalho, tem como resultado dois tipos de relação com o espaço: “En primer lugar, y en sentido más estricto, se da un turismo que no establece vínculos territoriales permanentes con el espacio de ocio al que se dirige. En segundo lugar, encontramos un turismo permanente en el uso del mismo espacio, lo cual habra dado lugar a alguna forma de vínculo territorial psicosociológico, generándose lo que se ha denominado como residencia secundaria.” Embora acertadamente escrevendo acerca dessas duas relações turístico-espaciais, não há interesse de Sanchez pela origem do segundo tipo desta relação, anterior ao próprio turismo, justamente, a construção da segunda residência como espaço do ócio antigo, absorvido pelo turismo como área de indolência e restauração da força de trabalho.

O otium não teria sido o lugar da calaçaria – para a elite romana, a villa (24) era o local do otium vivido como territorialidade propiciadora do exercício da inteligência (25) e, eventualmente, preparadora de alguma ação futura (26).

(24) Por exemplo: Quinto Horácio Flaco, autor da Arte Poética, vivendo entre 65 a.C e 8 a.C, livre dos constrangimentos financeiros a partir de 38 a.C., pode ser proprietário de uma quinta na região Sabina ou país Sabino, na geografia antiga, situado na Itália, entre o Lácio e a Úmbria, no qual, sazonalmente, encontrava a tranqüilidade e a simplicidade do campo, distante da movimentada Roma. [NdA]. Cf. também DURANT, Will. História da Civilização, 3ºparte, tomo 1º, Cia Editora Nacional, SP, 1946. Noticia Will Durant que Tibério manteve residência na ilha de Capri, Domiciano em Alba Longa, Adriano construíra em Tibur. E, desnecessário dizer, Plínio o moço – amigo de Trajano – fez, em carta, descrição de sua villa em Laurentum, à beira-mar, na costa do Lacio.

(25) Cf. também HOUAISS, A., Dicionário da Língua Portuguesa, ed. Objetiva, RJ, 2001.

(26)Cf. CORBAIN, Alain. O Território do Vazio, Cia. das Letras, SP, 1989, p. 267.

Seria interessante acrescentar que o vocábulo latino otium ou otius, significando cessação do trabalho, repouso ou quietação está ligado à palavra grega skholé, designando esta tempo livre, lazer, descanso, mas também estudo, lugar de estudo, escola, ocupação voluntária de um homem com ócio, livre do trabalho servil. Skholé está na origem do latim schola que, além de significar divertimento, recreio, colégio, aula, é o vocábulo que gerou, em língua portuguesa, a palavra escola. Por ação futura, ademais, devemos entender sobretudo ação política; no mundo antigo a atividade política ocupava enormemente o tempo do cidadão. Sob esse ângulo, é concernente esta citação de Hannah Arendt: “A palavra grega skolé, como a latina otium, significa basicamente isenção de atividade política e não simplesmente lazer, embora ambas sejam também usadas para indicar isenção do labor e das necessidades da vida. De qualquer modo, indicam sempre uma condição de isenção de preocupações e cuidados.” (27)

(27) ARENDT, H. A Condição Humana, Forense-Universitária, 2ª ed., RJ, 1983, p. 23.

Depreende-se daí que a vilegiatura esteve ligada ao território do estudo, sendo subsumida – pelo turismo – apenas na sua dimensão imobiliária ligada à segunda residência, distante, ademais, do “turismo sem território”, um dos tipos de relação entre território e turismo de Knafou (28). De resto, o território da vilegiatura, isto é, a villa do ócio, parece se aproximar bem mais desta “…atividade humana que é um importante meio de desabrochamento do indivíduo…” (29) do que o próprio turismo, cuja defesa essa citação de Remy Knafou representa; pois sem esquecer que era o aristocrata quem na villa se desapertava, são as férias, melhor, é o turismo que realiza a indolência, a ausência de estudo e o vazio.

Talvez não pudesse ser de outra forma, uma vez que a sociedade moderna é de trabalhadores, “[…]…uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a pena conquistar a liberdade.” (30) Conquistar a liberdade, esclareça-se, das prisões do trabalho.

(28) Cf. KNAFOU, Remy. “Turismo e Território, por uma abordagem científica do turismo”. In: RODRIGUES, Adyr A.B. (org.). Turismo e Geografia, reflexões teóricas e enfoques regionais, Hucitec, 3ª ed., SP, 2001. pp. 71-73. Knafou sugere três tipos de relações: (a) “territórios sem turismo; (b) turismo sem território; (c) territórios turísticos.” A primeira relação parece também estar próxima da vilegiatura, pois Knafou aceitando a existência de “territórios sem turismo” até o século XVIII, sem escrever, incluiria as antigas villas de ócio como exemplos desta primeira relação turismo-território.

(29) KNAFOU. Id. Ibid. P.73. A frase completa é: “Se nos lembrarmos que não há turismo sem turistas: se recusarmos as idéias prontas; se recusarmos o domínio exclusivo dmercado sobre esta atividade humana que é importante meio de desabrochamento do indivíduo e se tentarmos colocar um pouco de ordem num fenômeno multiforme, teremos então feito um pouco de progresso”.

(30) ARENDT, H. A Condição Humana, Forense-Universitária, 2ª ed., RJ, 1983, p. 12.

Claro que despregar a classe trabalhadora de seu lugar diuturno de trabalho e habitação, como nota Daniel Hiernaux Nicolas (31), modificando seus hábitos espaciais, foi um dos êxitos sociais do século XX. O que não diz Daniel Nicolas, diga-se de passagem, é que esse desfraldar ocorreu sobretudo nos países altamente industrializados, onde o trabalhador – como sócio menor – passou a usufruir do saque colonial. O que Remy Knafou procura recusar (32) e Hiernaux Nicolas não aceita ou não deseja ver, denominando certa crítica ao turismo de “[…] Enfoques más tradicionales… y en particular los marxistas […]” (33), é que esse eventual meio de revelação do indivíduo (Knafou) e a vitória da questão social (Nicolas) se deram à maneira turística – reprodução da força de trabalho, i.é, mesmo pontualmente, buscando a vaga de liberdade que as férias e a viagem prometeriam, o turista não escapa da realidade: as férias existem para se poder trabalhar; trabalha-se para poder tirar férias e viajar – harmoniosamente de acordo com o capital, que permanentemente se multiplica apenas para continuar capaz de se multiplicar (34).

(31) NICOLAS, Daniel Hiernaux. “Elementos para un Analisis Sociogeografico del Turismo”. In: RODRIQUES, Adyr A. B. (org.), Turismo e Geografia, reflexões teóricas e enfoques regionais, Hucitec, 3ª ed., SP, 2001, p. 41.

(32) Refiro-me a citação no parágrafo anterior de Hannah Arendt.

(33) NICOLAS, Daniel Hiernaux, op. cit. p. 41.

(34) Cf. HESSE, Reinhard. HESSE, Reinhard. Viajar como Fuga para a Afirmação: Aspectos do Turismo em Massa nas Sociedades Altamente Industrializadas, mimeo., s/d..

Distante dos lugares do mercado turístico – os não-lugares (35) e os símiles de lugares (36) – a territorialidade da antiga vilegiatura foi assentada na propriedade, residência, fortuna, quiçá no prestígio e na autoridade.

Formadora de residências campestres ou de beira-mar, a vilegiatura dirigiu-se para o subúrbio – suburbium – cujo significado romano diz respeito tanto aos arrabaldes quanto aos bosques vizinhos, aldeias, granjas e villas (37). De fato, a temporada de recreio passada em áreas distantes da cidade, originariamente, deu vida a um território pacificador da alma e propiciador da inteligência – o subúrbio – cuja existência, escreve Lewis Mumford, torna-se “[…] visível quase tão cedo quanto a própria cidade […] (38).

(35) Cf. CARLOS, A.F.A. “O Turismo e a Produção do Não-Lugar” In: CRUZ, Rita de Cassia Ariza da (org.). Turismo: Espaço, Paisagem e Cultura, Hucitec, SP, 1996, pp.25-37.

(36) Por exemplo: Óbidos, em Portugal, e Tiradentes, nas Minas Gerais. O vocábulo /símile/, significando semelhante, análogo, quereria colocar uma diferença com o não-lugar, pois não deixando de ser absolutamente um local vivido, por conseguinte, guardaria distância relativa do não-lugar, aqui exemplificado pelos absolutos espaços-mercadorias: resort, Disneylândia, transatlânticos, etc.

(37) Sobre o subúrbio, ver : O Rapto Ideológico da Categoria Subúrbio. FERNANDES, Nelson Nóbrega., Rio de janeiro, 1858-1945, dissertação de mestrado, PPGG, IGEO, UFRJ, 1996.

(38) MUMFORD, Lewis. A cidade na História, suas origens transformações e perspectivas, Martins Fontes, 3ª ed., SP, 1991, p. 522.

O conceito de subúrbio industrial-proletário está distante. Mumford noticia referências, na era bíblica, de “[…] pequenas tendas que eram construídas no meio dos campos e vinhais abertos, talvez para guardar as safras noite e dia, quando estavam prestes a serem colhidas, mas sem dúvida também para refrescar a alma, cansada dos tijolos cozidos e dos maus odores da própria cidade.”(39)

Em “O Subúrbio – E depois”, Lewis Mumford (40) constrói um conceito de território suburbano afastado da cidade e próximo do espaço/tempo da paisagem desembaraçada, da residência, da superioridade higiênica, da recreação, de nobres e gentis-homens – da vilegiatura (41). Com efeito, esta foi criadora de subúrbios ou de capitais suburbanas, tais como Versailles, Karlsruhe, Potsdam (42), Petrópolis (43); cidades-residências da Aristocracia, pois o Antigo Regime não se despreendera absolutamente da antiga vivência da skolé grega e do otium romano.

(39) MUMFORD, Lewis. A cidade na História, suas origens transformações e perspectivas, Martins Fontes, 3ª ed., SP, 1991, p.522.

(40) Cf. MUMFORD, Lewis. “O Subúrbio – E depois” , in A Cidade na História…, op. cit., pp. 521-566.

(41) “[…] a partir do século XV, deu-se maior ênfase à amplidão horizontal: o poder se propagou. Não tendo espaço na cidade, escapava para os subúrbios, como fez Luiz XIV, que, lembrando como tinha sido forçado a abandonar Paris por causa de um levante popular em sua juventude, resolveu refugiar-se em Versalhes: uma capital suburbana.” MUMFORD, L. “O Subúrbio – E depois”, in: A Cidade na História -, suas origens, transformações e perspectivas, Martins Fontes, 3º ed. SP, 1991, p. 410.

(42) Id. Ibid., p..419.

(43) Embora nascida em meados do século XIX, engenhada pelo Império de D.Pedro II, Petrópolis seria também herdeira dessas ressonâncias aristocráticas.

Gerando sentimento de pertença, foi criadora a vilegiatura de espaços vividos realizadores de lugares; menos fluida e mais envolta na aspereza dos meios de transportes disponíveis antes da Revolução Industrial, polarizava a sazonal vilegiatura o deslocamento entre a cidade e o campo, estabelecendo a segunda residência, desenhando formas e criando a existência que as vivifica (44), produzindo o espaço suburbano, muitas vezes, transformado adiante em cidades.

Ao inverso, assegurado pela Revolução Industrial, cujo visceral corolário foi o aumento da velocidade dos transportes estribado no carvão e no petróleo – as bases energéticas e tecnológicas da civilização dos hidrocarbonetos -, o alargamento da produção de mercadoria encontrou no turismo importante viés de realização espacial. Mais móbil e menos tomada pelos azedumes dos meios de transportes que envolviam as viagens antes da Revolução Industrial, desde Thomas Cook (45), pôde o turismo constituir paisagens sem concretude existencial; não absorvendo o antigo otium a viagem turística produziu espaços não vividos ou experimentados como mercadorias.

(44) Cf. SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço, técnica e tempo, razão e emoção, Hucitec, SP, 1996.

(45) Cf. PIRES, Mário Jorge. Raízes do Turismo no Brasil, ed. Manole, Barueri, 2001. pp.1-25.

A produção dos espaços turísticos vive distante do antigo sentido da vilegiatura e de suas villas ou capitais suburbanas de ócio. Escravizado pelo capital, o antigo caráter do tempo livre, no qual o homem existia para o mundo e a sua cultura, foi exterminado. Com base nas massas, a prática moderna de deslocamento no tempo livre é produtora de espaços de alienação, pois o turismo não herdou o exercício da inteligência libertadora que, embora aristocrática, a vilegiatura propiciara até o fim do Antigo Regime.

O turismo, então, pode ser avistado como uma das engrenagens da Indústria Cultural – ou braço espacial dessa Indústria. Doravante, o velho traço distintivo do tempo livre não mais será vivido em vilegiatura, uma vez que a temporada e lugar isentos de preocupações e cuidados se transmutaram na parte que restou entre o trabalho e o cansaço: a distração. Diga-se a propósito que a diversão, sendo necessária à manutenção da vida como o trabalho e o sono, é alimento para ser digerido como o pão, i. é, como elemento fundamental de salvaguarda e restauração da vida biológica. Sem o circo e o pão a vida não se realizaria. Espaços turísticos exemplares como Disneylândia, transatlânticos, Epcot Center, resorts e outros mais, estariam ligados ao divertimento reprodutor da capacidade de trabalho no interior do capital. Espaços-mercadorias assim constituídos são conseqüências da sociedade de massas que, necessitando de diversão, consumiria o espaço como mercadoria biológica. O problema é que, como mercadoria de salvaguarda, continuamente o divertimento exigiria novos produtos. Nesta condição a Indústria Cultural, conseqüente à economia e à sociedade de massa, avança de forma jamais avistada sobre os objetos do mundo, a cultura, emparedando e destruindo o belo – instrumento de resistência à alienação – para realizar diversão, precisamente, mercadoria (46). A Indústria Cultural, em benefício da distração, apodera-se então da cultura – aqui compreendida como instrumento de leitura do real, que, eventualmente, anuncia outros espaços ou novos mundos.

Pela ótica da Indústria Cultural, o turismo neste passo também avançaria o seu arranjo espacial de distração – cujos exemplos foram citados no parágrafo anterior – sobre regiões naturais, áreas ou cidades inteiras que, de agora em diante, seriam experimentadas como espaços de divertimento, tal como o barroco tiradentino (47) e os processos de enobrecimento das zonas centrais urbanas transformados em cenografias de entretenimento; ou o ecoturismo impedindo a natureza de manifestar “[…] os seus sofrimentos, ou, pode-se dizer, chamar a realidade pelo seu nome legítimo” (48).

(46) Cf. ARENDT, H. Entre o Passado e o Futuro, Perspectiva, 2ª ed., SP, 1972.

(47) Cidade de Tiradentes, Região das Vertentes, MG.

(48) HORKHEIMER, M., Eclipse da Razão, editorial Labor do Brasil, RJ, 1976. p.112. Dir-se-ia, como complemento, todas estas regiões naturais, áreas ou cidades inteiras transformadas em símiles de lugares.

Aceitando-se como infactível o afastamento do espaço-mercadoria da prática turística, queda o deslocamento das massas à procura de recreio em viagem da força de trabalho no interior do capital (49).

O turista, justamente porque saído de uma sociedade moderna de trabalhadores (50), não conhece e nem quer enxergar o seu desamparo: a viagem de férias que não leva à inovação e ao autoconhecimento. Bem distante, pois, da vilegiatura que constituiu espaços sazonais de fixação do otium.

(49) Como notável membro espacial da Indústria Cultural, aliás, o turismo nublaria incerta réstia de luz ou esperança de outro deslocamento que, caso asseverada, viveria liberta das paisagens e estruturas turísticas, existindo, talvez, na residência isolada, ou mesmo na viagem solitária e educativa.

(50) Refiro-me a esta já mencionada citação: “[…]…uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a pena conquistar a liberdade.” ARENDT, H. A Condição Humana, Forense-Universitária, 2ª ed., RJ, 1983, p.12.