O ANTIPLATÔNICO BARÃO DO RIO BRANCO

Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima

Para uma permanência de três meses, desembarcou no Rio de Janeiro numa radiosa manhã de domingo, em novembro de 1910, o polígrafo chileno Joaquim Edwards Bello.

Espírito cultivado, alma sensível, com aquela permanente ponta de humor característica dos seus compatriotas, Edwards Bello, de lápis em punho anotou incontáveis aspectos da vida brasileira, do fim da primeira década deste século, e, reuniu tanto material que deu à luz, em 1911, o precioso volume intitulado “Três Meses em Rio de Janeiro”.

O jovem chileno chegava justamente quando extertorava o tumultuado quatriênio Afonso Pena/Nilo Peçanha e quando ia ter início a era hermista, marco do começo da decadência da República Velha.

Bello acompanhou os lances da Revolta da Chibata que irrompera na Guanabara em 24 de novembro de 1910; analisou o comportamento extravagante de representante diplomático de seu país, o irrequieto Francisco Herboso; criticou a maneira como os argentinos tratavam os brasileiros; falou da nossa musa popular, de João do Rio, de Ruy Barbosa, do Barão do Rio Branco, das águias do Palácio do Catete e, como não podia deixar de ser, das relações chileno-brasileiras.

O ilustre viajor andino, não fazia parte da claque que vivia incensando o nosso grande Chanceler, o Barão do Rio Branco. No seu entender, era ele o grande culpado pelo arrefecimento da velha e tão alardeada amizade entre Brasil e Chile, máxime durante o segundo reinado.

Sobre o Barão, logo no início do livro, disse estas palavras que raros de seu tempo, nacionais ou estrangeiros, ousaram pronunciar, quanto mais escrever:

“No meio da fumaça da pólvora e do ruído das fanfarras e clarins aparecem as grandes figuras dos imperialistas da grande República e, dominando-as, surge a enérgica efígie do chanceler vitalício, o Barão do Rio Branco, o artificioso comediante que maneja os fantoches deste grande Guignol que é o mundo político sulamericano. Somente um fantoche que desapareceu do cenário manifestou-se rebelde à autoridade do mestre e esteve a ponto de lançar seu país em uma sangrenta guerra contra o Brasil, cujas ambições desmesuradas ele adivinhava; este homem foi Zeballos, o tigre, como o chamavam, cuja pele dissecada jaz, segundo a fantasia dos caricaturistas brasileiros, ao pé do leito do chanceler vitorioso”.

E por que tanta antipatia votada ao Barão, que afinal tantas vitórias diplomáticas conseguira no trato com nossos vizinhos, evitando a luta armada e por conseguinte mantendo a paz e o equilíbrio de forças nesta banda do Atlântico?

Simplesmente porque o chanceler havia se metido na delicada questão de Tacna e Arica, pendência angustiante vinda da guerra do Pacífico (1879/1883), ponto de honra para o brio chileno e que no entender dos filhos da pátria de O’Higgins somente a eles caberia liquidar, sem o bedelho de quem quer que fosse.

A sagrada divisa dizia o seguinte:

“Nós ganhamos a guerra e nós a liquidaremos”.

Em meio às farpas lançadas contra a atitude do governo brasileiro, através de Rio Branco em relação ao problema existente entre Chile e Peru, Edwards Bello, fez com imenso espírito crítico, um retrospecto da tão propalada amizade entre Chile e Brasil.

Sendo aquele país andino, durante todo o período monárquico e parte do republicano, o único a não ter fronteiras conosco, o único, portanto a não disputar com os brasileiros territórios em regiões lindeiras, era natural que vivêssemos numa eterna lua de mel com a pátria de Barros Arana, de Jose Toribio Medina e de Diego Portales.

Tudo muito lírico, muito romântico, muito platônico. Vez que outra, servíamos, nós e eles como massa de manobra no jogo político ibero-americano, de modo a manter o perfeito equilíbrio nas zonas de maior atritagem no cone sul.

Dizia Bello:

“O Brasil, em pleito constante com todos os seus vizinhos, que são todos os paises da América do Sul, exceto o Chile, se sentiu atraído por este país longínquo, ordeiro e simples, com o qual nunca podia ter questões de nenhuma espécie … E nasceu a simpatia.

Nós visitamos; nós fizemos carinhos; tivemos nós uma avenida e uma praça Brasil e eles uma rua Chile … E a coisa não passou disto”.

Mas todo esse idílio durou cerca de setenta anos, até que o vilão da história, no conceito de Bello, botou tudo a perder metendo-se, com interesses subreptícios, na delicada questão de Arica e Tacna.

Então perguntava o polígrafo chileno.

“Quem é o causador do desmoronamento desse bolo de núpcias, tão finas e cuidadosamente preparadas com filigranas de caldas, guardado durante tantos anos?”

Era, consoante sua ótica, o Barão do Rio Branco.

Mais adiante Edwards Bello dava nome aos bois e desabafava enfático:

“Refiro-me à questão de Tacna e Arica. O grande chanceler, o Barão do Rio Branco, com uma constância e uma tenacidade muito incômoda para nós, quis agregar mais uma página ao livro de suas glórias, tratando de obrigar o Chile, com cem maquinações e malandragens, dignas do Monsenhor Sibila a resolver rapidamente a dificílima questão do Norte, cortando as províncias chamadas cativas com toda a naturalidade; como se tratasse de umas lingüiças ou de um pedaço de presunto.”

E perguntava o chileno exacerbado:

“Não sabe que é uma questão de honra nacional que queremos liquidar nós mesmos?”

O diabo não era tão feio como pintava Bello. Afinal a crise durou pouco e se as relações bilaterais nunca mais foram tão líricas e pueris, também não se romperam a ponto de causar idiossincrasias irremediáveis.

Justos os arroubos nacionalistas de Edwards Bello, tanto mais que ele estava no epicentro da crise, mas convenhamos, o Barão do Rio Branco estava obrando segundo a máxima internacional de que o que regula o relacionamento das nações são interesses e não fantasiosas e idílicas juras de amor.

Nem só de banquetes, festas, visitas, palanques e discursos bombásticos vive o mundo diplomático. Nesse trato o pragmatismo fala mais alto que o hedonismo, sem dúvida os dois maiores condicionadores do comportamento humano.

A circunstância revela o estadista.

Na altura, o Barão do Rio Branco, preocupado em liquidar as pendências com o Peru por questões de limites, não titubeou em advogar as velhas pretensões peruanas oriundas da Guerra do Pacífico, ainda que tal atitude prejudicasse ou arranhasse o simpático xodó braso-chileno, com direito a cafuné e cheiro na orelha.

Dizem os italianos, que não há maior dor que recordar os tempos felizes na miséria. Este talvez tenha sido o sentimento de Joaquim Edwards Bello naquela quadra terrível para as relações entre Chile e Brasil, coincidente com sua estada no Rio de Janeiro e, portanto, no Brasil da época, que, apesar de tudo, não se esquivava aos aplausos à figura simpática de Francisco J. Herboso, Ministro Plenipotenciário da república andina entre nós, vivente nestas serras onde deixou saudades e uma crônica de refinamento, bom gosto e opulência.

Falhando no seu vaticínio, ousou prever o polígrafo Bello:

“Com o tempo, quando o juízo da História der seu sereno veredicto, essa fanfarronada de Rio Branco será considerada como um dos maiores erros da chancelaria brasileira, pois terá significado o fim de uma amizade tradicional, que, ainda que decorativa, servia para nivelar as paixões políticas e era uma garantia de paz, um espantalho para todas as aves de rapina provocadoras de conflitos internacionais, que surgem vez que outra em nosso continente.”

Puro engano. Passado esse pequeno entrevero, restabelecidos os partícipes em tão intrincado caso, saiu o Brasil ganhando na liquidação de suas pendências com o Peru, o Chile no acerto de suas contas com essa República e, ao fim e ao cabo, Brasil e Chile seguiram bons amigos, já sem o lirismo de antigamente, mas de olho nos interesses comuns no continente e fora dele e mais agora, ao esboçar-se essa importantíssima aliança que tenta grupar os nossos países nesse contexto promissor chamado Mercosul.