CAXIAS NA CONTROVÉRSIA DA SURPRESA DE PORONGOS

Cláudio Moreira Bento, Associado Correspondente

Em 29 de março de 2003, às 12.30, no programa da RBS A Ferro e Fogo, em Porto Alegre, sobre a Revolução Farroupilha, o antropólogo da Pontifícia Universidade Católica, e homem da gloriosa raça negra, Iosvaldir Carvalho Bittencourt, ressuscitou a controvérsia que parecia haver transitado e julgado na História, de que a surpresa do Exército Farrapo em Porongos, em 14 nov 1844, no atual município de Pinheiro Machado, foi resultado de uma traição de Canabarro à causa farroupilha, em combinação com o Barão de Caxias e Chico Pedro. Ressurreição apoiada em falso oficio (ou forjicado) que teria sido dirigido pelo Barão de Caxias ao Tenente Coronel GN Francisco Pedro de Abreu, comandante da Ala Esquerda de seu Exército, baseada em Canguçu, desde agosto de 1843.

Perguntando ao Sr. Iosvaldir o amparo de sua afirmação, à grande e atenta audiência do programa A Ferro e Fogo, informou haver buscado apoio no escritor Mário Maestri em sua obra O Escravo Gaúcho Resistência e Trabalho, Porto Alegre: Ed. da UFRGS,1993, que aborda o ofício para nós forjicado, bem como para vários historiadores gaúchos, como Alfredo Varela, em sua História da Grande Revolução, Porto Alegre: Ed. Globo, 1933 p. 255-259; Othelo Rosa, ao biografar Canabarro na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (RIHGRGS), 3 trim. 1934, p. 248; O Major João Baptista Pereira na RIHGRGS, 1 e 2 trim. 1928, p. 34-47; Alfredo Ferreira Rodrigues, em Canabarro e a surpresa de Porongos, no Almanaque Literário e Estatístico do RGS 1899. p. 215-272; Assis Brasil, em História da República Rio Grandense,1887; Walter Spalding, em Canabarro mestre de brasilidade, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v.197, 194, p.3/62; Henrique Oscar Wiedersphan, em Convênio de Ponche Verde, Porto Alegre EST/SULINA/Universidade de Caxias do Sul, 1980, p.67/79, em que fez um retrospecto sobre o problema Porongos e, mais, Ivo Leites Caggiani, em David Canabarro de tenente a general, Porto Alegre: Martim Livreiro, 1993, além dos não gaúchos como o Dr. Eugênio Vilhena de Moraes, o grande biógrafo de Caxias, e o General Augusto Tasso Fragoso, em A Revolução Farroupilha, Rio de Janeiro: BIBLIEx, 1939, p.271 e, mais, nós, em O Exército farrapo e os seus chefes, Rio de Janeiro: BIBLIEx, 1992, p.127/136, bem como em O Negro e seus descendentes na Sociedade do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: IEL, 1975 e Estrangeiros e descendentes na História Militar do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: IEL, 1975. Os dois últimos premiados em 1º e 2º lugares, em Concurso Nacional sobre o Biênio da Imigração e da Colonização do Rio Grande do Sul, sendo O Negros e descendentes … prefaciado pelo deputado federal Carlos Santos, ilustre descendente da raça negra, como o foram o Coronel José Mariano de Matos e o é o Dr. Alceu Colares que governaram interina ou efetivamente, caso do último, os destinos do povo gaúcho. José Mariano de Matos, que na Constituinte, em Alegrete, apresentou um projeto de Abolição da Escravatura na República Rio Grandense.

Mas em 1937, o riopardense o Major Deoclécio de Paranhos Antunes recebeu do Cel. Jonathas Rego Monteiro, o fundador do atual Arquivo Histórico do Exército em 1934, a missão de copiar os Ofícios de Caxias que se encontravam no arquivo do Museu Júlio de Castilhos, na Seção Histórica, sobre a responsabilidade do Dr. Eduardo Duarte.

Ofícios copiados e publicados na série Primeira Exposição Geral do Exército, na administração do Ministro da Guerra General Canrobert Pereira da Costa, e sob o título Ofícios do Barão de Caxias 1842-1845, Rio de Janeiro: Imprensa Militar, 1950.

O Major Deoclécio representava o Instituto de Geografia Militar do Brasil (IGHMB), na Comissão de três membros que organizou a citada Primeira Exposição Geral do Exército. E na página 148, ao final do ofício forjicado escreveu:

“Nota Importante do Copiador: Este oficio deve ser criteriosamente analisado. Há quem tenha dúvidas a respeito de sua autenticidade. No livro 171 do Museu do Estado, ele esta deslocado. Isto é, foi copiado na última página do mesmo p. 249, enquanto o oficio que trata da parte de combate dos Porongos está na página 201. O oficio a que se refere Caxias, de 28 de outubro, contendo o mesmo assunto, não foi possível descobrir. Este oficio talvez elucidasse o assunto. Vide o que diz a propósito Alfredo Ferreira Rodrigues no Almanaque do Rio Grande do Sul de 1901. A defesa de Alfredo Ferreira Rodrigues de Canabarro me parece fraca. Julgo o documento legítimo, pois Francisco Pedro não teria nenhuma conveniência em divulgar um documento que lhe tiraria todas as honras de uma estrondosa vitoria, como foi julgada a surpresa de Porongos.”

Julgo apressada e imprudente esta conclusão de autenticidade e fidedignidade do documento e da inconveniência de Chico Pedro em não divulgá-lo, pois isto não aconteceu em realidade e a divulgou bastante, como o arquiteto de sua forjicação, como se verá, com apoio em depoimento a seguir de Felix de Azambuja Rangel, segundo Wiedersphan no citado Convênio de Ponche Verde, p.71.

“Após a surpresa de Porongos, perto da Quinta do Bibiano estando Chico Pedro acampado no Pequeri, disse ao seu major de Brigada João Machado de Moraes – És capaz de imitar a firma de Caxias! Respondeu-lhe: A letra é boa e talvez eu possa imitar! Pois vamos fazer uma intriga contra Canabarro. Pois este homem é o único que pode ainda sustentar a Revolução, portanto vamos fingir um ofício de Caxias para mim, dizendo que no dia tal ataque de Porongos, mais ou menos, vá atacar Canabarro e derrotá-lo, visto haver entre ele, Barão de Caxias e oficiais deste um convênio. Esta intriga foi devido a dizerem os republicanos que Canabarro era um traidor. E assim este distinto general republicano passou a traidor, o que é uma grande ofensa ao seu ilibado caráter e imorredoura memória”.

O citado Felix Azambuja Rangel mencionou que Chico Pedro, encontrando-se com Caxias em Piratini, mostrou o citado oficio que ditou em Pequeri, no que Caxias aprovou e mandou tirar pelo seu Secretário a cópia que assinou, entregando-a de novo a Francisco Pedro. E, este, ao passar pela casa de Manoel Rodrigues Barbosa, mostrou tal oficio. Este, republicano extremado, exaltou-se, chamou Canabarro de traidor e pediu a Chico Pedro para deixar-lhe o ofício a fim de copiá-lo. Logo que se retirou Francisco Pedro, Manoel mandou fazer diversas cópias e remeteu uma delas a Bento Gonçalves …

Manuel Patrício de Azambuja, cunhado de Felix Azambuja Rangel, informou que “ouviu Chico Pedro (seu parente próximo), seu comandante, dizer: Produziu bom efeito a bomba que lancei no meio dos farrapos …

E na Quinta do Bibiano eu soube da trama, por Chico Pedro, do falso oficio e imitação da assinatura de Caxias … Em caminho, Felix Rangel expôs-me reservadamente parte do que fica dito e mais tarde me disse o próprio Barão de Jacui, o Chico Pedro ”

E prossegue “É que Canabarro era único chefe republicano que realmente tinha verdadeiro prestígio para manter por mais algum tempo a luta, por isso bem compreenderam Caxias e Chico Pedro inutiliza-lo, indispondo-o com os outros generais e seu Exército, o que conseguiram com artificioso plano.” ( WIEDERSPHAN, Convênio de Ponche Verde p. 72/73). Chico Pedro, chefe militar notável e que admiro como soldado, omitiu este fato em suas Memórias publicadas na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, 1921. Qual seria o motivo?

Sobre a assinatura por Caxias do forjicado oficio em Piratini, o historiador local, David de Almeida negou que Caxias tenha lá estado, quando a isto fiz uma referência.

Admitido que a carta foi forjicada por Chico Pedro e assinada depois de Porongos por Caxias, ela não teve inferência nos resultados de Porongos e nas conseqüências para a Infantaria constituída de soldados negros, segundo o que Mario Maestri abordou em seu citado livro e no que se apoiou o antropólogo da PUC Sr. Iosvaldir para afirmar que Canabarro e Caxias combinaram a surpresa de Porongos, para matar os soldados negros da Infantaria.

Mário Maestri deu crédito ao ofício forjicado e conferiu a Caxias, em seu comentário uma atitude racista, que não encontra amparo na vida e obra do maior de nossos generais ao acreditar que Caxias tenho ordenado, “poupe sangue brasileiro quanto puder, particularmente da gente branca da província ou índios”. Assim ficava claro que deveria matar os negros da Infantaria. E prossegue Mário Maestri: “E os corpos dos 100 guerreiros negros farrapos, não deixavam dúvida da identidade que unia chefes imperiais e farroupilhas no medo e no ódio aos seus trabalhadores negros.”

A propósito de Mário Maestri recordo que escreveu no DO Leitura (12/141 fev 1993, p.10) do Diário Oficial de São Paulo que nosso livro O negro e descendentes na Sociedade do Rio Grande do Sul e o do professor Fernando Henrique Cardoso eram os mais completos e os mais sérios sobre o negro no Rio Grande do Sul. E que nós não havíamos subordinado nossa obra a nenhuma linha ideológica e, sim, resgatado documentalmente, pela primeira vez, a presença do negro no processo histórico gaúcho. E neste trabalho levantamos, exaltamos, glorificamos e trouxemos a público a existência dos Lanceiros negros farrapos que hoje figuraram com justo destaque na minissérie A Casa das Sete Mulheres. Assunto sobre o qual abastecemos, a seu pedido, o correto e ético ator Douglas Simon que representou bem o personagem Cel. Joaquim Teixeira Nunes, a maior lança farrapa e que comandou os bravos lanceiros negros que Caxias, pioneiro abolicionista, os incorporou, como livres, com a paz de Ponche Verde, à Cavalaria do Exército no Rio Grande do Sul, aos quais, em justo tributo às suas memórias, que me orgulho de haver despertado nos gaúchos e brasileiros, foram exaltados tardia, mas de forma comovente com o seu líder Teixeira Nunes, por terem salvado a Republica Rio Grandense de total falência em Porongos, conforme tratamos em o citado O Negro e seus descendentes … sob o titulo Os Lanceiros Negros que salvaram a Revolução Farroupilha em Porongos (p.172/173).

Lanceiros Negros que também estudamos na 3ª parte de nosso citado Estrangeiros e descendentes na História Militar do RGS. Talvez se o antropólogo Sr Iosvaldir tivesse lido estes livros não teria feito as colocações caluniosas sobre o Duque de Caxias, dando a idéia aos gaúchos de se tratar de um racista. Mas o que fazer? Ele lançou na ventania penas de centenas de sacos, que a semelhança da calúnia, que ele potencializou, jamais poderão ser reunidas. E faço estas colocações por dever de justiça na voz da História, por Caxias ser o patrono da Academia de História Militar Terrestre do Brasil que presido e também o autor de obra a ser lançada breve Caxias e a Unidade Nacional, patrocinada por brasileiros membros e amigos desta Academia e admiradores de Caxias, inclusive um soldado de Portugal.

Ivo Caggiani em David Canabarro de Tenente a General, Porto Alegre Martins Livreiro – Editor, 1992 escreveu:

“Ainda que estivessem em andamento as negociações de paz, a grande preocupação de Caxias era realmente David Canabarro a quem nunca conseguira vencer” e, completaríamos, a que nunca Chico Pedro conseguira surpreender.

E que Caxias escreveu ao Ministro da Guerra Jeronimo Coelho:

“É sem dúvida a primeira vez que Canabarro é surpreendido, o que até agora parecia impossível por sua continua vigilância!”

Deste ofício forjicado, publicado como autêntico pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, como informou, o Sr. Mário Maestri, existiram cópias que circularam entre os farrapos e produziram seus efeitos de Guerra Psicológica, sendo uma encontrada por Alfredo Varela na documentação de Domingos José de Almeida e outra com os filhos de Bento Gonçalves. Hoje, face a este contraditório ninguém acredita na autencidade deste ofício e que Canabarro teria sido um traidor.

E a própria minissérie A Casa das Sete Mulheres não alimentou nos gaúchos esta convicção expressa na RBS no programa A ferro e Fogo, pelo convidado antropólogo Sr. Iosvaldir Carvalho Bittencourt, reservista do 18º BI Mtz e que concordou com nossa tese de haver sido o Barão de Caxias pioneiro abolicionista na Paz de Ponche Verde, em D. Pedrito. Pacificação que a Casa das Sete Mulheres apresentou honrosa, comovente e com pompa e circunstância.

Estavam junto com Canabarro na surpresa de Porongos os generais Antonio Neto, João Antônio da Silveira, coronéis Lucas de Oliveira, Felipe Portinho e Teixeira Nunes e o Ministro Vicente da Fontoura dos quais jamais se ouviram desconfianças de lealdade e valor de Canabarro.

E a Teixeira Nunes e a seus lanceiros negros esta muita a dever a Republica Rio Grandense, por terem evitado, ao custo de muitas de suas vidas, numa luta desigual, a Republica continuar operando com um exército que em pouco se refez e atingiu cerca de 1000 homens sobre o rio Jaguarão.

Sobre o assunto escrevemos em O Exército Farrapo e os seus chefes.

Canabarro ao assumir o Comando-em-Chefe do Exército da Republica, em agosto de 1843, manteve a sua tropa em movimentação e atividade constantes, através da Guerra de Guerrilha (A Guerra a gaúcha). Segundo o General Morivalde Calvet Fagundes em sua História da Revolução Farroupilha p.201:

“Canabarro sustentou por 16 meses a Guerra de Guerrilha. Foi mais de um combate por mês. Caxias o perseguiu por 38 léguas, através de toda a fronteira sudoeste sem conseguir um encontro com Canabarro, que tentava repetir a tática vitoriosa contra General João Paulo dos Santos Barreto, em 1841, famoso engenheiro militar.

Em 14 nov 1844, Canabarro foi surpreendido em Porongos por Chico Pedro. Esta surpresa foi por longo tempo discutida pelos farrapos. Fomos ou não traídos em Porongos?

Lamentamos que a RBS, em A Ferro e Fogo, no ano do bicentenário do Duque de Caxias, tenha propiciado este absurdo de potencializar uma calúnia contra o maior de nossos generais, assim definido por Alfredo de Taunay, a beira de seu túmulo, no sepultamento de Caxias, na qualidade de representante do Exército:

“Só a maior concisão, unida a maior singeleza, é que poderá contar os seus feitos! Não há pompas de linguagem! Não há arroubos de eloqüência capazes de fazer maior esta individualidade, cujo principal atributo foi a simplicidade na grandeza.”

Capistrano de Abreu, grande historiador do Brasil, assim interpretou os sentimentos do Exército Brasileiro, ao saber que o Duque de Caxias havia dispensado as honras militares:

“O Duque de Caxias dispensou as honras militares! Acho que ele fez muito bem! Pois as armas que ele tantas vezes conduziu à vitória, talvez sentissem vergonha de não terem podido libertá-lo da morte!”

Caxias tem sido grande vítima da manipulação da História. Manipulações que abordamos e rebatemos em artigo Caxias vítima da manipulação da História publicado na Revista do Exército, v.127, out/dez 1980; no Letras em Marcha, jul/ago 1993 e na Folha Popular de Santana do Livramento de 25 ago 1990 etc e o publicaremos ampliado em nosso livro Caxias e a Unidade Nacional, comemorativo de seu bicentenário pela Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB) de que é patrono.

Não sei para onde parte expressiva da Mídia quer levar a identidade e perspectiva históricas do povo brasileiro, promovendo monólogos, sem o contraditório, e manipuladores irresponsáveis de mentes, ao invés de promover um Projeto Verdade. Pois não estão ouvindo os historiadores, como se eles não existissem, num desrespeito e invasão ditatorial de suas funções sociais, como os mestres dos mestres, os mestres da vida, a se concluir da expressão hoje incorporada ao popular “A História é a mestra das mestras, a mestra da vida!” Enfim que a Mídia do Brasil atue no sentido de unir e não dividir almas de brasileiros, como Caxias que poderia ser considerado também o Patrono da Unidade Nacional, além de patrono da Anistia, segundo o historiador Dr. Alexandre Barbosa Lima Sobrinho.

Aqui o nosso protesto símbolo, como um passarinho que leva exaustivamente água no seu bico tentando apagar um grande incêndio na escala axiológica (de valores) brasileira, tarefa para ele impossível, mas consciente de que está fazendo a sua parte e, na comprida esperança de pobre, de que os demais façam a sua ou cumpram o seu dever democrático.