UMA ARTÉRIA DE MUITOS NOMES – DE BOURBON A DR. NELSON DE SÁ EARP

Joaquim Eloy Duarte dos Santos, associado titular, cadeira n.º 14, patrono João Duarte da Silveira

A atual Rua Dr. Nelson de Sá Earp, de cujo solo emergem espigões que escondem dos transeuntes o giro diário do sol, foi um inóspito morro da Fazenda do Córrego Seco coberto de mata densa. Suas sendas não eram riscadas por picadas firmes, pisadas por botas de viajantes, porque não era caminho regular, como a trilha pelo Alto da Serra que lançava os tropeiros na demanda da sede. No planejamento urbano de Júlio Frederico Köeler a via foi projetada e batizada com o nome de Rua de Bourbon e seria aberta no íngreme morro para dar acesso a uma praça traçada na planta, de nome Largo Dom Afonso, a atual Praça da Liberdade, cuja penetração inicial foi feita seguindo o curso do riacho a partir da Rua do Imperador. O nome Bourbon representava homenagem à ancestralidade da Família Imperial e Dom Afonso ao filho primogênito do Imperador e herdeiro do trono, nascido em 1845 e falecido em 1847. O grande brejo, que era o Largo Dom Afonso, tornou-se o grande lixão do povoado e a Rua Bourbon foi sendo rasgada no morro e sua terra servindo para aterrar o lixo infestado de insetos e exalando mau cheiro.

O grande historiador petropolitano Walter Bretz, no seu trabalho “O Largo Dom Afonso”, publicado no jornal petropolitano “O Comércio” em vários dias dos meses de março e abril de 1924 e republicado pela “Tribuna de Petrópolis”, na edição de 10 de janeiro de 1959, descreve a primitiva Rua Bourbon: “A princípio essa rua não passava de uma sinuosa e acidentada picada que, segundo dizem os antigos, partindo mais ou menos, da esquina da atual avenida General Osório, seguia pelo alto dos morros e através os terrenos e junto às casas que, depois, pertenceram às famílias Dupont, João de Deus Campos, Hees e Glassow, precipitando-se, mais ou menos, no ponto onde hoje está a subida para o Morro do Cruzeiro. A rua atual foi toda escavada na montanha, e somente a 2 de dezembro de 1858, mais de treze anos após a fundação da colônia, entregue ao trânsito público de cavaleiros e veículos”.

Aberta morro acima, a Rua Bourbon foi bordada de chalés de meia-água com ornatos em lambrequins de diversos desenhos. As construções ora fincavam suas bases no limite do meio-fio, ora, nas elevações de terrenos, não escavados até aquele limite preferindo os proprietários as casas em altiplanos, com elevados muros junto ao passeio. Na elevação principal da via mantiveram-se algumas partes altas, sobrevivendo até hoje um extenso trecho do lado direito, entre os edifícios Dom Afonso e Miguel Detsi.

No ano de 1862 o viajante Carlos Augusto Taunay, em seu livro “Viagem pitoresca a Petrópolis para servir de roteiro aos viajantes, recordação desse ameno torrão brasileiro”, assim descreve a Rua de Bourbon:

“Antes de passarmos à rua Bragança entraremos pela direita na de Bourbon. Quase perfilada com aquela, porque ela nos reconduz, através a garganta do morro do Cruzeiro, à extremidade ocidental da rua do Imperador, em frente da ponte e rua de D. Francisca”.

A Rua D. Francisca citada é a atual Rua General Osório.

O segundo nome da via foi Rua Cruzeiro, em 5 de dezembro de 1889, por ocasião da mudança das denominações de diversas ruas petropolitanas que homenageavam pessoas, datas e fatos dos tempos imperiais, por nomes implicados com o novo regime republicano, ou que não lembrassem a Família Imperial. A nova denominação foi inspirada no Morro do Cruzeiro, assim batizada, na planta de Köeler, a elevação cortada pela Rua de Bourbon.A nova denominação perdurou durante pouco mais de duas décadas.

No “Guia de Petrópolis” (1921/1922?) consta, sobre a rua:

“AVENIDAS – Cruzeiro- começa na Avenida 15 de Novembro e acaba na Praça da Liberdade. Encontram-se aí a Estação Telegráfica Federal e a Sociedade Beneficente Petropolitana. Tem 32 prédios”.

Em 1931, o Prefeito Yeddo Fiuza, denominou-a João Pessoa, atendendo a uma determinação do Governo Provisório de Getúlio Vargas, no sentido de homenagear no Brasil inteiro o seu companheiro de chapa na eleição presidencial de novembro de 1930, assassinado na Paraíba, no decorrer daquela campanha eleitoral.

O Ato n. 242, firmado pelo prefeito em 25 de julho de 1931, dizia: “O Prefeito do Município de Petrópolis, considerando que o Doutor João Pessoa, pela sua altivez e patriotismo, representa uma das mais expressivas figuras de nossa nacionalidade;
“Considerando que o heróico presidente da gloriosa Paraíba, continua vivendo na consciência do povo brasileiro, incitando-o ao cumprimento de todos os deveres cívicos;
“Considerando que a memória do grande morto vem sendo perpetuada em todo o Brasil;
“Considerando que Petrópolis tem se associado sempre a todos os grandes movimentos nacionais, usando das atribuições que lhe são conferidas pelo Art. 36, n. 14, letra a, da Lei 2316, e 30 de janeiro de 1929, decreta:
“Fica denominada Rua João Pessoa, a rua Cruzeiro, que liga a Praça Rui Barbosa à Av. 15 de Novembro.
“Publique-se, registre-se e cumpra-se.
“Gabinete da Prefeitura Municipal de Petrópolis, 25 de julho de 1931. (a) Yeddo Fiuza – Prefeito”.

A denominação Rua João Pessoa teve pouco mais de meio século de vida, até que o Prefeito Paulo Gratacós, homenageando o grande médico e político petropolitano, Dr. Nelson de Sá Earp, falecido no ano de 1989, deu-lhe o nome à artéria, sepultando de vez João Pessoa na nomenclatura urbana de nossa cidade, homenagem que fora acintosamente política por via federal e nada representava para a história do Município.

No dia 9 de maio de 1992, a Rua Dr. Nelson de Sá Earp recebeu o busto em bronze do querido médico, iniciativa da Academia Petropolitana de Educação, pelo seu presidente, professor José de Cusatis, com apoio da Academia Petropolitana de Letras, da Sociedade Médica de Petrópolis, do Hospital Santa Teresa e da Prefeitura Municipal de Petrópolis. A solenidade de inauguração foi presidida pelo Vice-Prefeito Dr. Luvercy Fiorini, e, representando o Prefeito Paulo Gratacós, sua esposa D. Lucila Braga Gratacós, presente toda a família de Nelson de Sá Earp, à frente a viúva, Sra. Amélia de Sá Earp. Usaram da palavra, na bela e tocante homenagem, o presidente da Academia Petropolitana de Letras, que subscreve este artigo histórico, em nome das academias de Letras e de Educação; a vereadora Carmem Felicetti em nome do Poder Legislativo e o filho do homenageado Dr. Arthur Leonardo de Sá Earp, representando a família do grande petropolitano homenageado. A Banda do Batalhão D. Pedro II executou o Hino de Petrópolis. Compareceram, ainda, ao ato, em manhã de esplêndido sol secretários municipais, familiares e colegas do renomado médico, o Reitor Emérito da UCP e Diretor da Faculdade de Medicina, irmão do homenageado, Arthur de Sá Earp Netto, o Bispo Emérito D. Manoel Pedro da Cunha Cintra, colegas médicos, dentre eles: Gabriel Malluli, Diretor Médico do Hospital Santa Teresa, Donato D’Ângelo, Mário Fonseca, Cláudio Taichós, Jorge Ferreira Machado, Dinizar de Araújo Filho, Cláudio Mesquita de Azevedo, o Major Antônio Virgínio de Moraes, a Irmã Superiora e Diretora do Hospital Santa Teresa Irmã Clélia Zorzal, Vereadores João Luiz Freitas e Hélio Fiúza, acadêmicos das academias de Letras e de Educação, sócios do Instituto Histórico de Petrópolis, outras autoridades e boa participação popular.

Desde os idos imperiais, a passagem tornou-se importante por via obrigatória de ligação entre a Rua do Imperador e a Praça da Liberdade nos dois sentidos da mão de rolamento das viaturas, primeiro, para os carros de tração animal, em seguida para os automóveis e bondes. Suas calçadas eram largas, com árvores nas duas margens, com sobrados de utilização mista, nas extremidades para as ruas do Imperador e Professor Pinto Ferreira, e casas residenciais em toda a sua extensão, algumas em elevações acima do corte do nível do passeio. Hoje pouco resta desse casario, substituído por prédios elevados, bem como inexistindo o belo, copioso e harmônico arvoredo, que desapareceu pelo estreitamento das calçadas para aumento da pista de rolamento. Os prédios novos foram edificados mediante o desaterro das elevações, existindo hoje apenas uma construção acima do nível do passeio, o edifício Marajó, número 153, de belo estilo eclético, formando com o edifício Cruzeiro dois significativos marcos arquitetônicos da cidade.

No ano de 1903, no lado par, primeira quadra da então Rua Cruzeiro, foi construído um sobrado, destinado o térreo ao comércio e o sobrado para sede da Sociedade Beneficente Petropolitana. As firmas mais expressivas ali instaladas foram a Casa Cruzeiro, ainda existente e a filial da extinta Padaria das Famílias, com sede na Praça Dr. Sá Earp Filho. Na década de 60, para abertura do prolongamento da Rua 16 de Março, o prédio foi demolido, assim como o sobrado de características semelhantes, esquinado com o final do lado par da Rua do Imperador. A sociedade beneficente encerrara suas atividades, a Padaria das Famílias agonizava e a Casa Cruzeiro, fundada por Álvaro de Castro, fez construir um prédio no que restou do terreno e nele, por determinação do proprietário, foi mantido o granito de entrada do antigo prédio bem como parte do piso do acesso para a antiga Casa Cruzeiro, o que é, orgulhosamente exibido, pelo atual proprietário Celso de Castro, que deu continuidade à firma do pai. Um gesto de recordação afetiva e historicamente correta da antiga construção.

Seguindo pelo lado par, subindo a rua, está hoje o Edifício Russel, prédio da década de 40, residencial e comercial. Na ampla loja do Russel funcionou, por muitos anos, um dos mais conceituados salões de beleza, explorado pelos cabeleireiros Fernando e Madalena sob a denominação de “Salão Madeleine”. Para erguer o Edifício Russel foram sacrificadas duas belas casas residenciais assobradadas. Em seguida vinha uma casa construída na elevação, com largo muro de pedra para o passeio e onde residiu o comerciante e Vice-Cônsul de Portugal Humberto de Araújo Júnior, que mantinha acima do portão um brasão de Portugal indicando a sede do vice-consulado. Humberto foi uma das personalidades mais interessantes e queridas de Petrópolis, presente em todos os acontecimentos sociais e culturais de qualquer nível.

Na seqüência, o Edifício Dom Afonso, da década de 50, de inspiração normanda, totalmente residencial, seguido por um terreno alto onde estiveram edificadas casas de residência, inclusive uma onde residiu o grande médico e literato petropolitano Mário Fonseca. Este local está hoje enfeando a rua e, de certa feita, ameaçou desabar, sendo a área cercada e o intenso trânsito da rua prejudicado por muitos dias. O fato não ocorreu e continua lá aquele morro desafiando a especulação imobiliária.

Seguem-se dois prédios novos e a Rua Miguel Detzi, que se encontra com a Rua Oscar Weinschenck, na seqüência e em direção à Rua Irmãos D’Ângelo, cortando a elevação chamada popularmente de “Morro dos Milionários” em razão das construções residenciais de grandes proporções e fino gosto arquitetônico. Essa via elevada segue o traçado, pelo morro, de toda a Avenida Köeler, desembocando por detrás e ao lado do Paço Municipal.

Em seguida a única casa residencial que resta no lado par, na esquina com a Rua Miguel Detzi, hoje uma clínica médica, edificada sobre um muro de pedra para nivelamento da construção com a subida da referida rua.

Terminando a descida do lado par, a Rua Dr. Nelson de Sá Earp possui dois prédios o “Capitólio”, de utilização comercial, construído pela Empresa Fluminense de Engenharia, que não finalizou a obra, ficando o prédio, terminado muitos anos após, sem a projeção inicial de muitos pavimentos, ridiculamente achatado, e o “Serrano”, residencial, este último construído em terreno onde existiu uma bela casa residencial esquinada com a Praça da Liberdade, residência da família Rocha Miranda, e depois vendida ao Serrano Futebol Clube, que cedeu o terreno à incorporação do atual prédio.

Atravessando a rua, passando pela ilha urbana onde está o busto do Dr. Nelson de Sá Earp, encontramos a casa esquinada, do princípio do século, onde funciona um curso de línguas, antes o restaurante Domênico, e salva da demolição diante de um grande movimento de preservacionistas quando ela esteve a ponto de ser demolida para dar lugar a um projeto de um novo edifício na área. Em seguida passa-se por uma casa residencial, de construção nova, em cujo terreno existiu a residência do Juiz Dr. Joaquim Maurity, assassinado, na cozinha, a golpes de foice, por seu empregado Walter Rosa, em famoso latrocínio que abalou os “anos dourados” de Petrópolis. Ao lado está o sobrado onde se encontra o restaurante “Bauernstub” e onde funcionou por pouco tempo, na primeira década do século XX, o correio e o telégrafo, existindo, ainda, no corredor ao lado, os trilhos para os carrinhos de correspondência. Tem seqüência um velho sobrado, sempre sub-utilizado, bem do gosto das edificações dos anos 20/40. Em seguida, o Edifício Cruzeiro, um dos mais antigos da cidade, é um marco da arquitetura petropolitana do mesmo período. No restante da rua, até os dois sobrados de seu início ímpar, estão espetados espigões da última safra de nossa arquitetura, tendo desaparecido alguns chalés e sobrados da primeira metade do século XX e onde residiram muitas famílias tradicionais da cidade e existiram atividades produtivas, como a famosa fábrica caseira de caramelos dos irmãos D’Ângelo, um grande produto petropolitano jamais igualado, passado para industriais de outro município, provocando o seu desaparecimento da cidade. Para atingir a residência e a fábrica caseira dos caramelos famosos, enfrentava-se uma escadaria enorme, com início ao lado do sobrado, onde funcionou a firma Quintella & Irmão, uma das mais tradicionais da cidade, dirigida por Carlos de Freitas Quintella, político fluminense de nomeada. Uma exceção nesse corredor de edifícios é o Edifício Marajó, o único mantido em elevação, de estilo normando, representativo de uma arquitetura dos anos 50 que intentava resgatar, modernizando, o estilo europeu de nossa construção urbana.

Descendo a rua, pelo lado ímpar, entre os edifícios com gabaritos médios de 10 pavimentos, todos de construções recentes, chega-se a dois prédios, no início da via: um de duas residências geminadas, dos anos 40, uma parte hoje ocupada por uma clínica médica e, por fim, o prédio esquinado com a Rua Professor Pinto Ferreira, hoje com comércio de comestíveis, onde funcionaram, em épocas diferentes, a agência postal e telegráfica antes da mudança para o atual prédio, da Rua do Imperador, no ano de 1922; a empresa J. Varanda Comércio e Indústria com posto de gasolina e venda de peças; e, no sobrado, a confecção de camisas sob medida de Eduardo Santos para a sua Casa Edsan e a Tabu Distribuições Gerais do empresário Amleto Taboada.

Na Rua Cruzeiro, no ano de 1927, o Professor Henrique Pinto Ferreira abriu um curso de férias para seus alunos do Colégio Luso-Brasileiro, transformado no Colégio Pinto Ferreira, que passaria, ampliado para a Praça Visconde do Rio Branco, hoje Alcindo Sodré, no local onde está o edifício Imperador.

Os tempos aprazíveis da Cruzeiro deram lugar a uma compressora João Pessoa, onde o desprezo pelo pedestre foi tomando conta das pranchetas do planejamento urbano, com vista prioritária para a circulação de veículos, dai perder o petropolitano a sombra do arvoredo, o sol filtrado pelos vãos dos sobrados, as subidas para os morros dos doces caramelos, as calçadas mais largas, menos espetadas por postes de roliças envergaduras, o cumprimento aos conhecidos diante das janelas dos chalés abertas para o passeio. Na Nelson de Sá Earp que percorro hoje, sempre em passo apressado, esbarrando em transeuntes comprimidos nas calçadas, descendo o meio-fio para prosseguir a caminhada, arranhando meus ombros na dantesca passagem de veículos de volumetria estonteante e negritude de fumaças empestadas, sempre me vem uma nuvem de lembrança de dias onde era gostoso andar pelos caminhos do sonho de Köeler. O céu da via está tomado pela geometria cubista das edificações o que remete o transeunte a uma cela repleta de condenados a viver sob o filtro de um sol quadrado, definitivo prisioneiro de um presente que renega o passado e atemoriza o futuro.