CADMO VENCE A IMENSA SERPENTE – 1ª PARTE – DESCOBRIMENTO DO BRASIL POR CADMO

Enrico Mattievich, associado titular, cadeira n.º 12, patrono Claudionor de Souza Adão

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Dedico este artigo à memória do brilhante físico, Professor José Leite Lopes, que, como Diretor do CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas) e editor da série de preprints Ciência e Sociedade, ousou publicar a primeira versão do presente artigo, em 1986.

Resumo

No livro de minha autoria Viagem ao Inferno Mitológico, seguindo ao pé da letra a Teogonia de Hesíodo, – Aos pés da elevada montanha Atlas, nos extremos confins ocidentais do famoso Oceano –, identifiquei as ruínas do Palácio de Hades e Perséfone, nos restos arqueológicos do palácio labiríntico de Chavín de Huántar, aos pés das cumes mais elevadas dos Andes peruanos. No presente artigo procurarei explicar como encontrei que o famoso trabalho de Hércules, no qual vence o Dragão de cem cabeças para apoderar-se das maçãs de ouro do jardim das Hespérides, narrado no mito estelar de Hyginus, se relaciona com o mito estelar de Cadmo que vence a imensa serpente Draco, preservado por Ovídio, e ambos os mitos interpreto como alegorias geográficas, que preservariam a heróica epopéia da conquista do Rio Amazonas (Solimões) na Idade do Bronze. O jardim das Hespérides, com suas maçãs de ouro cobiçadas por Hércules, se referiria ao jardim de Coricancha, em Cusco, conservado desde tempos antiquíssimos com plantas e frutas reproduzidas em ouro, até a chegada dos Espanhóis. Para confirmar esta tese, será necessário que arqueólogos capacitados, realizem um sério trabalho de datação estratigráfica na fortaleza ciclópica de Sacsahuamán, a qual, em vez de construída apenas 100 anos antes da chegada dos Conquistadores Espanhóis, – idade atribuída pela história oficial – teria mais de 3.200 anos de antiguidade. A idade dessa formidável acrópole fortificada, com três muros ciclópicos de pedra, será matéria que discutiremos numa segunda parte.

PRÓLOGO

O presente artigo foi publicado inicialmente na coleção “Ciência e Sociedade” nº. 013/86, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, CBPF/CNPq, Rio de Janeiro, 1986.

Pode parecer estranho que físicos se dediquem à historiografia, porém não é original. Se me permitem a comparação, lembrarei que científicos notáveis como Isaac Newton se dedicaram a investigar a origem das antigas civilizações. Em seu livro “The Chronology of Ancient Kingdoms”, resume seus cuidados, tratando de reconciliar o Gênesis com a história das nações.

O presente artigo corresponde ao 3º capitulo do livro-projeto do autor (a). Agora, depois da sua publicação, corresponde ao 4º capitulo (b). Obra na qual sustento que a mitologia grega relativa ao Mundo Inferior, conhecido também como Império de Hades, Erebo ou Inferno, não é uma invenção literária, imaginada pela mente humana, porém se baseia no conhecimento de um lugar geográfico antipodal, que identifiquei na América do Sul, mais especificamente na região andina do atual Peru (c).

(a) Orígen de la Mitologia Griega en el Peru Prehistórico – Iª Parte – Mitologia Chtónica .
Registrado pelo Escritório de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em Artigo baseado no 3º capítulo do livro-projeto do autor, intitulado INFIERNO (Sobre el) Agosto 1984. Registro: Nº. 32182; Livro 25; Folha 200.
(b) VIAGEM AO INFERNO MITOLÓGICO Nas ruínas do labirinto de Chavín, a chave para decifrar o significado oculto dos mitos gregos. Por Enrico Mattievich. Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 1992.
TAXIDI STH MUQOLOGIKH KOLASH H ANAKLUYH THS AMERIKHS APO TOUS ELLHHNES Enrico Mattievich. EKDOSEIS EKATH, Attik´hV (EDITORA EKATH, Atenas) 1ª edição 1995 – 5ª edição 2007.
JOURNEY to the MYTHOLOGICAL INFERNO America’s Discovery by the Ancient Greeks, by Enrico Mattievich. Rogem Press, Denver, 2010.
(c) Nos Andes Centrais do Peru identifiquei as ruínas do estrondoso Palácio de Hades e Perséfone, citado na Teogonia de Hesíodo, nas ruínas do Palácio-Oráculo de Chavín de Huántar.

Fragmento da Epopéia de Guilgamesh. O mais ilustre dos heróis, junto com seu amigo Enkidu, empreende uma arriscada expedição até a floresta dos Cedros, onde se encontra o dragão Huwawa, e, ante a vacilação de seu amigo, o exorta com estas palavras:
“Quem, meu amigo, pode escalar o céu?”
“Somente os deuses podem viver para sempre sob o sol”.
“Para os homens, contados são os dias”.
“Tudo o que conseguem não é mais do que vento”!
“Temes a morte? Que foi de tua força heróica?”
“Permite que marche à tua frente”.
“E anima-me de viva voz: Avança, não temas!”
“Se cair, pelo menos terei tornado famoso meu nome:”
“Guilgamesh!—dirão — caiu lutando contra o feroz Huwawa”.

Fragmento da tabuleta III, da antiga versão Babiloniana (c. 500 a.C.) The Ancient Near East. Vol. I, Ed. by James B. Pritchard, Princeton University Press

INTRODUÇÃO

Em setembro de 1969, um extenso artigo publicado no jornal “O Globo” revivia um assunto adormecido mas sempre latente no Brasil: a visita pré-histórica de navegantes fenícios às costas brasileiras (1). A notícia citava as opiniões do professor Cyrus Gordon, da Universidade de Brandeis (Massachusetts), que acreditava na possibilidade dessas viagens. Ele se encontrava no Rio de Janeiro à procura de inscrições fenícias, que teriam sido encontradas no Brasil. O prof. Gordon era um conhecido orientalista e havia realizado importantes contribuições ao estudo dos textos descobertos na biblioteca real de Ugarit, formada por tabuletas de argila que haviam permanecido soterradas durante 3.000 anos, até serem descobertas em 1929 por Claude Schaeffer, na localidade de Ras Shamra, no litoral da Síria (2).

(1) O Globo 12/09/69, p.3. “Arqueólogo afirma: Brasil é nome dado pelos fenícios”.

(2) Schaeffer, Claude F. A. A new alphabet of the ancients is unearthed; National Geographic Magazine; oct. 1930.

A antiga Ugarit, desenterrada dos escombros, foi uma cidade cosmopolita que floresceu entre os meados e fins do segundo milênio antes de Cristo. Naquela época fora um importante porto do Mediterrâneo, administrado pelo canaanitas, que mantinham amplos contatos com o mundo culto de seu tempo. A natureza poliglota da sua comunidade se espelha nos diversos vocabulários usados nas tabuletas. Ali os escribas traduziam o vocabulário ugarítico em sumério, akkadiano e hurrita. Além dessas línguas, foram achadas algumas tabuletas cíprio-minóicas, assim como hieróglifos egípcios e hititas. As descobertas arqueológicas de Ugarit revelaram ao mundo a existência de contatos íntimos entre os canaanitas e as civilizações creto-micênicas e peloponesa. Os textos épicos de Ugarit se relacionam com a poesia homérica e com os textos poéticos hebraicos. No Antigo Testamento -diz o prof. Gordon – os hebreus nunca chamam seu idioma de “hebreu” ou “israelita”, mas a língua de Canaã” (3).

As tabuletas de Ugarit contêm informações de inestimável valor, que revelam fragmentos da história, religião e costumes dos canaanitas, uma civilização desaparecida, famosa pelas suas habilidades marítimas e cujo povo era chamado fenício, pelo nome grego de seu fundador – Phoenix – irmão de Cadmo, que por sua vez é considerado fundador de Tebas.

A destruição de Ugarit foi contemporânea ao período egípcio de El Amarna no tempo do faraó Akenatón, que a cronologia convencional situa no século XV a.C. Esta data é atualmente contestada pelos revisionistas modernos, que preferem a cronologia proposta por Velikovsky (4) e que situaria este evento no século IX a.C.; ou seja, nos dias de Homero, contemporaneamente ao rei Shalmanaser III da Assíria e ao rei Josaphat, de Jerusalém (5). Esta última cronologia inclusive parece estar em melhor concordância com os resultados de datações absolutas, obtidas mediante a técnica do radiocarbono.

(3) Gordon, Cyrus H. Before the Bible — The common Background of Greek and Hebrew Civilizations; p. 131; Books of Libraries Press, Plainview, New York, 1973.

(4) Down, D. K. The Chronology of Egypt and lsrael; special Edition of “Diggings” (1989); Published Monthly by D. K. Down; Po Box 341, Hornsby, 2077, Austrália.

(5) Velikovsky, Immanuel. Ages in Chaos; Vol. I; (From the Exodus to the King Akhnaton), p. 308, Sidgwick & Jackson, London, 1958.

Na notícia divulgada pelo “O Globo”, o professor Gordon trazia novos dados a favor de uma antiga hipótese, que dizia ser de origem fenícia o nome Brasil. Seus estudos paleográficos indicavam que este nome teve origem no vocábulo “brzl”, que era usado pelos canaanitas para designar o ferro. Além do mais, ele tinha a firme convicção de que nas terras redescobertas por Cabral se encontravam as provas arqueológicas que permitiriam confirmar essas viagens transoceânicas, nas antigas inscrições lapidares gravadas sobre pedras. Talvez com essa notícia divulgada pelo jornal esperasse ele motivar os especialistas brasileiros, a fim de trocar informações. Infelizmente isto não aconteceu. Muito pelo contrário. Alguns dias depois, o prof. Pedro Calmon, à época presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, publicou uma réplica contestando as afirmações do ilustre visitante, na qual dizia que o nome Brasil é de origem germânica (6). Sobre as inscrições achadas no Brasil e atribuídas a navegantes fenícios, em sua opinião, não passavam de simples brincadeira levada a sério por Ladislau Netto, diretor do Museu de Arqueologia do Rio de Janeiro, em 1872. Enfim, por um triz o ilustre orientalista escapou de ser chamado de asno, pois, segundo o professor Calmon, “a verdade sobre tais assuntos já consta até nos livros para crianças” (7).

(6) A origem do nome BRASIL é um assunto muito polêmico. Esse nome já aparece em antigas cartas como uma ilha situada no Atlântico, sempre a Oeste das terras habitadas pelos celtas. Vide nota 1, p. 20 Ts. I-II da História Geral do Brasil por Francisco Adolfo de Varnhagen; 7a Ed. Melhoramentos, São Paulo, 1962.

(7) O Globo 15/09/69, p. 12, “Calmon contesta origem fenícia do nome Brasil”.

A resposta do professor Calmon era coerente com o consenso acadêmico estabelecido sobre este assunto, que “a priori” considera como impossível qualquer viagem pré-histórica através do Atlântico. Afortunadamente, o Brasil teve filhos ilustres que, a despeito das opiniões dos “acadêmicos amanuenses”, acreditaram na possibilidade dessas viagens pré-históricas e dirigiram seus esforços e pesquisas à procura das evidências para sustentá-la. Entre estes figura o ilustre historiógrafo Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), Visconde de Porto Seguro, o arqueólogo e ex-diretor do Museu do Rio de Janeiro, em 1872, Ladislau Netto, e um apaixonado pela pré-história brasileira, o Sr. Bernardo de Azevedo da Silva Ramos (1858-1931). Este último, não só acreditava plenamente que navegadores pré-históricos do Mediterrâneo teriam desembarcado nas costas do Brasil, senão que, como Champollión, pretendia ainda ter conseguido decifrar todas as mensagens que aqueles navegantes teriam deixado nas itacoatiaras, como são chamadas na língua tupi as antigas inscrições lapidares do Brasil. Ainda que o enorme trabalho, em dois volumes, legado pelo notável amador da arqueologia brasileira, não se enquadre nos modernos padrões da metodologia científica, devemos reconhecer-lhe o mérito de haver compilado centenas de desenhos achados nas itacoatiaras, nas quais, com bastante freqüência, é possível notar caracteres do tipo semítico e grego arcaico (8) (Fig. 1).

(8) Bernardo de Azevedo da Silva Ramos, Inscrições e tradições da América Pré-histórica; Rio de Janeiro, (Vol. 1,1930; Vol. II, 1939).

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Fig. 1 — Figuração do pensamento. Comparação de inscrições semíticas (a, d) com símbolos gravados nas itacoatiaras do Brasil (b, c).

(a) Cacos com inscrições achadas na Palestina, na localidade de Tell-ell Hesy. Note-se a semelhança de elementos na ilustração ao lado.
(b) Inscrição gravada numa rocha nas margens do Rio Amazonas, na localidade de Itacoatiara (perto de Manaus).
(c) Inscrição brasileira achada no sítio de Curraes Velhos, no termo de Brejo da Cruz, Distrito de Patu, Rio Grande do Norte. Esta inscrição apresenta símbolos com pontos e traços semelhantes à tabuleta semítica mostrada debaixo.
(d) Tabuleta com inscrições proto-sináiticas achada nas escavações de Deir-Allã, Transjordânia.
a e d: Driver, G.R., “Semitic Writting”, Oxford University Press, Oxford, 1976.
b e c: Ramos, Bernardo de Azevedo da Silva, “Inscrições e Tradições da América Pré-Histórica” (Vol. I e II), Rio de Janeiro, 1930 e 1939.

No debate Gordon-Calmon, uma vez mais se defrontavam duas posições antagônicas: a posição sustentada pelos “difusionistas”, na qual se inseria a hipótese do prof. Gordon, segundo a qual a cultura do Novo Mundo se deveria a aportes culturais originários do Velho Mundo, e a dos “isolacionistas”, na qual se acomodava o prof. Calmon; estes últimos acreditam que a América, rodeada por extensos oceanos, teve um desenvolvimento cultural independente. Na mesma época do debate, um cientista de grande imaginação e vigor, o Dr. Thor Heyerdahl, pensando que a verdade se encontrava entre estes dois extremos, realizou uma aventura náutica que demonstrava ser possível a navegação através do Oceano Atlântico, inclusive nas primitivas embarcações de papiro, como as que eram construídas pelos antigos egípcios. Partindo em 25 de maio de 1969 das costas de Marrocos, numa embarcação de papiro chamada Ra I, liberada a favor dos ventos e transportada pela corrente oceânica, depois de percorrer 2.662 milhas náuticas durante 55 dias, conseguiu chegar perto das costas da América do Sul, a 600 milhas de Barbados. Posteriormente, repetindo a aventura numa segunda embarcação de papiro chamada Ra II, depois de 57 dias de navegação e percorrer 3.270 milhas náuticas, chegava finalmente à ilha de Barbados, no dia 12 de julho de 1970 (9 e 10). Demonstrou desta feita que a América, longe de ser um continente inabordável durante a época proto-histórica, como afirmam os “isolacionistas”, se encontrava a pouco menos de dois meses de navegação das costas da África, navegando numa primitiva embarcação de papiro. O Dr. Heyerdahl demonstrou também que, devido às correntes oceânicas prevalecentes de leste a oeste, uma embarcação deste tipo, ainda que estivesse sem o leme, inexoravelmente derivaria sem rumo para o mesmo destino: América do Sul (ver discussão das correntes oceânicas na Adenda).

(9) Heyerdahl, Thor, The Voyage of Ra II, National Geographie, Jan, 1971.

(10) Heyerdahl, Thor, Las Expediciones Ra, Ed. Juventud, Barcelona, 1980.

MITOS ESTELARES COMO UM MEIO PARA CONSERVAR INFORMAÇÕES

Se o leitor em um vôo de imaginação pudesse contemplar o céu, encurtando em um breve instante o transcurso de milênios, observaria que a intercessão do plano da eclíptica (que contém a órbita da Terra) com o plano equatorial celeste (perpendicular ao eixo polar da Terra) desliza lentamente sobre o zodíaco. Este deslizamento do eixo equinocial, que define os pontos vernal e outonal da esfera celeste, se deve à lenta precessão do eixo da Terra, que retrogada em um período de 25.770 anos. Este fenômeno é chamado Precessão dos Equinócios e se manifesta como um lento deslocamento dos pontos equinociais na direção oeste ao longo da eclíptica, seguindo a sequência Touro, Áries, Peixes, etc., sobre o zodíaco e levando 2.147,5 anos para passar completamente de “casa” em “casa”.

Desde que o homem começou a plantar e a depender da agricultura, a empreender viagens de largo curso e, portanto, a depender das estações para realizá-las, começou também a preocupar-se com as regiões do céu onde parecia caminhar o Sol, observando as constelações que o precediam antes de seu orto e as que o seguiam no seu ocaso. Em particular, observou as constelações nas quais se encontrava o Sol quando o dia tinha a mesma duração da noite — o dia de equinócio vernal — a partir do qual os dias passam a ser de duração maior que as noites; e no equinócio outonal, a partir do qual ocorre justamente o contrário.

Na época pré-literal o astrônomo proto-histórico não dispunha de um sistema referencial que lhe permitisse relacionar as posições dos astros com as estações do ano, conseqüentemente teve que criar um método original para fixar suas observações astronômicas. Naquela época, provavelmente, foram inventadas as configurações estelares. Assim, ao grupo de estrelas sobre as quais parecia caminhar o Sol durante os equinócios vernais, entre 4.000 e 2.000 anos a.C., denominaram constelação do Touro, pelo aspecto desse conjunto de estrelas, que aparece como um par de cornos projetados no céu. Devido à precessão, o equinócio vernal deslizou para as Plêiades, um dos mais importantes grupos estelares dos povos que nos transmitiram a sua mitologia. Ao redor de 1.300 a.C., das Plêiades o equinócio vernal passou para a constelação de Perseu.

O edifício de Chavín de Huántar identificado (no Cap. III do livro) como o mitológico Palácio da Górgona (que segundo o mito grego foi vencida por Perseu) foi construído ao redor da época em que o equinócio vernal passou das Plêiades para a constelação do Perseu. Não devemos estranhar, portanto, que aquele edifício também possa ter alguma conexão com o mito estelar, que representa Perseu com a cabeça da Górgona, já que HUARI ou WARI (a principal divindade adorada em Chavín de Huántar) se encontra intimamente relacionada com as Plêiades, na mitologia peruana.

As atuais investigações sobre os mitos estelares permitem deduzir que a precessão dos equinócios já era conhecida pelos astrônomos que precederam Hiparco. Segundo Reiche, Platão e provavelmente Eudóxio tiveram notícia desse fenômeno através de outras fontes e não por observação pessoal. Presume o citado autor que esse conhecimento venha dos mitos egípcios, à semelhança do mito da Atlântida, citado por Platão (11).

O mito da luta de Cadmo contra o Dragão que a seguir consideramos, assim como as constelações circumpolares boreais que representam a luta de Héracles contra Draco, pode ser classificado como narração ou mito estelar, no qual as constelações foram usadas para fixar acontecimentos memoráveis realizados na Terra.

(11) Harold A.T. Reiche, The Language of Archaic Astronomy: A Clue to the Atlantis Myth? in Astronomy of the Ancients, Ed. by Kenneth Breeher and Michael Feirtag; the MIT Press, Cambridge, Mass, 1980.

O MITO DO COMBATE DE CADMO CONTRA O DRAGÃO

Agenor, rei de Tiro, teve uma bela filha, Europa, a quem Zeus amou. Esta princesa fenícia foi mãe de Minos, o mitológico rei de Creta, e de Radamanto, a quem alguns atribuíam a função de juiz dos Infernos e outros o situavam nas ilhas dos Bem-Aventurados ou Campos Elíseos.

A lenda que relaciona cretenses, fenícios e os infernos relata que Zeus, na forma de um magnífico touro branco, carregou em suas costas a filha de Agenor e a raptou a Creta. Depois do rapto, Cadmo foi enviado à procura de sua irmã Europa, forçado a percorrer o mundo até encontrá-la. Mandado por um oráculo a seguir a rota do Sol, descobre uma imensa serpente, contra a qual mantém uma luta vitoriosa. Semeia os dentes do Dragão vencido, dos quais vê nascer guerreiros, que em seguida lutam entre si até a morte. Com os cinco sobreviventes funda a cidade que o oráculo havia ordenado.

A luta de Cadmo contra a serpente é citada por Eurípedes, nos versos 638-675 de Os Fenícios, quatrocentos anos antes que fosse narrada por Ovídio. Sêneca também a cita nos versos 709-732 de Édipo. Porém, a versão mais detalhada deste mito tebano é narrada por Ovídio, no 3º livro das Metamorfoses, que a seguir apresentamos traduzida, do 1º ao 130º verso (12).

(12) Ovide, Les Métamorphoses, texte traduit par Georges Lafaye, Les Belles Lettres, Paris, 1961.

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Já tendo posto de lado a enganosa aparência de touro, o deus se dá a conhecer ao chegar nos campos de Dieta quando o pai, ignorando o destino da jovem filha, ordena a Cadmo ir à procura da raptada, acrescentando, extremoso, que o castigo seria o exílio caso não a encontrasse.

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Tendo percorrido o mundo inteiro — quem poderia descobrir, com efeito, as infidelidades de Júpiter? Fugindo da pátria e da ira do pai, o filho de Agenor se exila, e, súplice, consulta o oráculo febeu, perguntando-lhe que terra

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deveria habitar: “uma bezerra”, responde Febo, “que jamais sofreu o jugo nem conheceu a fadiga de arrastar o curvo arado, se mostrará a teus olhos nos campos solitários, toma-a por guia, segue o caminho que te indicar, e, no campo onde ela descansar, constrói as muralhas de uma vila que chamarás

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“Vila Beociana”. Mal Cadmo saíra da caverna de Castália, viu, caminhando devagar, uma novilha sem guardião, que não apresentava no pescoço o menor sinal de já haver trabalhado. Ele a segue a passo lento e, em silêncio, adora Febo, que lhe indica o caminho.

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Já atravessara a vau o Céfiso e os campos de Panope; a novilha parou e, elevando ao céu sua vistosa fronte ornada de altos cornos, encheu o ar de mugidos; e então, virando-se para ver os companheiros que a seguiam, estendeu-se de flanco sobre a tenra relva. Cadmo agradece, beija a terra

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estrangeira e saúda os montes e campos desconhecidos. Prontificando-se para oferecer um sacrifício a Júpiter, ordena aos servos irem buscar numa fonte a água fresca para a libações.

Uma antiga floresta jamais violada pelo machado se elevava; ao meio havia uma caverna sombreada pela espessa folhagem de um salgueiro, onde as

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pedras formavam uma abóbada baixa, da qual emanava uma abundante fonte. Ali, no fundo desse retiro, se oculta uma serpente, filha de Marte; a crista notável pelo ouro, os olhos brilham como fogo, todo o corpo está cheio de veneno; três línguas vibram em sua boca e os dentes se arrumam numa

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tríplice fileira. Mal os estrangeiros recém-chegados de Tiro acabavam de dar os primeiros passos no funesto bosque, apenas urna recém-rajada na superfície líquida ressoava na água, que a serpente azulada avançou sua cabeça para fora do antro e se fez sentir com seus sibilos horríveis. As

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urnas lhes escapam das mãos, o sangue foge-lhes das veias e um súbito tremor lhes tolhe os membros entorpecidos de horror. O monstro, contorcendo seu dorso escamoso de anéis flexíveis, num salto sinuoso se recurva formando imensos arcos; logo, erguendo no ar mais da metade do corpo, domina toda a floresta. O corpo, se o vires por inteiro, é tão grande quanto

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o da serpente que separa as duas Ursas. Imediatamente avança contra os fenícios, que se aprestam, ou para combatê-la ou para fugir, ou não fazem nem uma coisa nem outra impedidos pelo medo e terminam por perecer; uns destroçados pelas dentadas, outros enlaçados entre seus enormes anéis e a outros mata com o sopro podre do funesto veneno.

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O sol a pino já fazia exíguas sombras. O filho de Agenor imagina, preocupado, o que retarda os companheiros e segue suas pegadas. Tinha por veste uma pele de leão, por armas uma lança de ferro resplandecente, um dardo

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e a coragem, que valia mais que qualquer arma. Tão logo entrou no bosque viu os cadáveres, e, em cima, o inimigo vitorioso, com o corpo imenso, lambendo com a língua ensangüentada os cruéis ferimentos, exclamou: “Ou vingarei vossa morte fidelíssimos companheiros, ou vos acompanharei”,

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e erguendo com a mão direita uma pedra atira-a, com um esforço descomunal. Com o choque, até altas muralhas com elevadas torres teriam sido abaladas; a serpente permaneceu ilesa; defendida, como uma couraça, pelas escamas e pela dureza de sua pele, que resistiu indene à violência da

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pancada. Essa dureza, porém, não a defendeu do dardo, que se fixou na curva da sua flexível espinha, penetrando o ferro inteiro em suas entranhas. Exasperado com a dor, o monstro virou a cabeça para trás, olhou o ferimento

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e mordeu a haste do dardo cravado em seu corpo, e, depois de o ter sacudido em todos o sentidos, arrancou-o das costas; o ferro, porém, permaneceu fixado nos ossos. Então, uma nova causa acrescenta-se às suas iras costumeiras, sua garganta se enche com as veias intumescidas de sangue e uma espuma esbranquiçada escorre em volta de seus lábios pestilentes e a terra

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sobre a qual desliza ressoa sob suas escamas; um hálito negro sai de sua boca, como a Estígia, e infecta o ar contaminado. Ora se enrosca em espirais que fazem uma volta imensa, ora pára mais ereta do que um longo tronco; ora num enorme ímpeto, como um rio empurrado pela tempestade, se

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precipita e derruba com o peito as florestas que lhe são como obstáculos. O filho de Agenor recua um pouco, e, protegendo-se com a pele de leão, se defende da ameaçadora garganta com a lança apontada. A serpente, enfurecida, em vão tenta atingir o impenetrável ferro e crava os dentes em sua

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ponta. E já o sangue começara a correr do seu palato peçonhento e a manchar a verde relva; porém o ferimento era leve, pois o animal fugia ao golpe retraindo o pescoço apenas atingido, impedindo, com esse movimento de recuo, que a arma aprofundasse na ferida. Foi então que o filho de Agenor,

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tendo lhe enterrado o ferro na garganta o persegue sem descanso, até que, à força de recuar, o adversário choca-se contra um carvalho, onde lhe transpassa tanto a cabeça como a árvore. Sob o peso da serpente, a árvore curva-se e, atingido pela extremidade da cauda, o tronco gemeu.

Enquanto o vencedor contemplava o enorme tamanho do inimigo vencido, uma voz se fez ouvir de repente: ele não soube reconhecer de onde procedia, mas eis o que escuta: “Por que, filho de Agenor, nutres tua vista com a serpente que acabas de matar? Também tu te verás transformado em

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serpente?” Preso muito tempo do pavor, Cadmo perdeu ao mesmo tempo o ânimo e a cor, e um terror glacial lhe arrepia os cabelos. Mas eis que Palas, a protetora do herói, depois de descer das mais altas regiões do ar, se aproxima dele e lhe ordena de trabalhar a terra e semear os dentes da serpente, germes de um povo futuro. Ele obedece, e, conduzindo o arado

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com suas próprias mãos, segundo a ordem recebida, abre sulcos na terra e semeia os dentes da serpente, de onde deverão nascer os mortais. Então, prodígio inacreditável, a terra começou a mexer-se; em primeiro lugar surgiram dos sulcos as pontas das lanças, depois os capacetes com penachos coloridos, agitados pelas cabeças que cobriam; depois apareceram ambos,

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peitos e braços carregando armas; assim foi surgindo da terra uma seara de homens ostentando escudos; como nos dias de festa, quando se ergue o pano do teatro e vemos surgir as figuras do retábulo, que primeiro aparecem mostrando o rosto, depois, pouco a pouco, todo o resto; como se estivessem sendo puxadas para cima com um movimento lento e progressivo, até aparecerem inteiras e de pé no proscênio.

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Espantado com esses novos inimigos, Cadmo prepara-se para empunhar as armas: — “Não as tomes” — lhe grita um guerreiro, desde a multidão que a terra acabara de criar — “Não intervenhas numa guerra civil” — ao mesmo tempo que feria com um golpe certeiro de espada a um de seus irmãos terrígenos; em seguida, ele próprio cai atingido por um dardo lançado de

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longe. Aquele que o matara não lhe sobrevive por muito tempo e exala o sopro que acabava de receber. Seguindo-lhes o exemplo, toda a turba se enfurece, e estes irmãos, subitamente paridos, sucumbem em uma luta intestina, pelos ferimentos que provocam reciprocamente. E já toda

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aquela juventude, que o destino concedeu tão breve existência, caía com seus peitos ainda quentes sobre sua mãe empapada de sangue; não restavam mais que cinco, um dos quais foi Equion, quando a uma ordem da deusa Tritônida (Minerva ou Palas) lançou ao chão suas armas; solicitando a seus irmãos uma paz leal, que lhes concedeu, por sua vez. O herói emigrado de

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Sidon os tomou por companheiros de seus trabalhos, quando fundou a vila prescrita pelo oráculo de Apolo.

O significado real deste mito jamais foi compreendido. Diodoro Sículo, referindo-se à versão racionalizada da lenda, dizia que a luta de Cadmo contra a serpente era uma saga da fundação de Tebas (13 e 14). Não devemos deixar-nos iludir pelos poucos detalhes geográficos concretos citados neste mito. Esses nomes nada mais significam que o herói ou seus descendentes fixaram-se nessas terras, fixando igualmente suas heróicas façanhas. Os mitógrafos modernos, por sua vez, não foram muito longe; secundando a versão de Pausânias e Diodoro, pretendem inclusive ter decifrado a espécie à qual pertencia o réptil morto por Cadmo: trata-se de uma cerasta, dizem, uma víbora do Egito que tem na cabeça duas protuberâncias escamosas, semelhantes a cornos (15).

Os junguianos, seguindo seu mestre, pensam que a serpente representa o tabu do incesto. “O Dragão e a serpente”, dizem, “são as representações simbólicas da angústia, face às conseqüências decorrentes da transgressão do tabu” (16).

É pueril pensar que o mito de Cadmo se originou de um fato trivial como matar uma serpente ou de um recôndito impulso incestuoso. A serpente pode simbolizar um evento ou fato real, certamente, mas deve tratar-se de algo extremamente importante, ao ponto de ter-se tornado uma alegoria estelar e figurar na esfera celeste.

(13) Diodoro Sículo, Vol. II, livro IV, Cap. 2.

(14) Pausânias, Vol. IV, livro IX, Cap. 10.

(15) Nota 1, p. 70. Ovide, Les Métamorphoses, Les Belles Lettres, Paris, 1961.

(16) Jung. C .G., Métamorphoses de L’ame et ses Symboles, p. 435, Librairie de L’université Georg & Cie, Genève, 1953.

 

INTERPRETAÇÃO GEOGRÁFICA DO MITO DE CADMO

A lendária luta de Cadmo contra a serpente pode ser comparada a uma imagem projetada fora de foco, onde o caprichoso jogo de luz e sombra parece delinear bizarras configurações, de modo que nem o maior esforço de imaginação seria capaz de descobrir, diretamente, a realidade ali representada. Quando, após sucessivas tentativas, conseguimos “focalizar” a realidade que originou este mito, a imagem que antes se mostrava irreconhecível perde sua caprichosa ambigüidade, revelando finalmente o seu significado.

Se a “serpente” que combate Cadmo não é um réptil, o que é que se oculta por trás dessa alegoria? Se trataria de algum rio? Existem precedentes de combates contra rios na literatura mitológica? Não só este precedente existe, como também esta alegoria mal compreendida deu origem a sérias críticas contra Homero: Filóstato reprochava a Homero o inverossímil combate de Aquiles contra o Rio Escâmandro, acusando-o de embusteiro (17).

Outro combate memorável foi o de Héracles contra Aquelôo, cujo nome se tornou sinônimo de água. Este rio, citado no canto 21a da Ilíada, não se refere ao maior rio de Hélade como geralmente se supõe, mas a um grande rio, comparável ao oceano. Aquelôo é citado por Pausânias como o juiz de todos os rios (18). Em que lugar se localizava esse rio fabuloso, chamado “Pai das Águas” — “O maior dos rios”?

Um eco da luta entre Oceano e Héracles pode ser notado na história segundo a qual o Oceano agitava a embarcação solar que conduzia Héracles até as Hespérides (ilhas do Poente, situadas no Oceano), mas cessa de agitar-se quando o herói o ameaça com sua lança (19). O Rio Aquelôo era representado sob diversos aspectos; segundo Sófocles, adota três formas: de touro, dragão e de homem com cabeça de touro (20). A Fig. 2 mostra uma representação do combate de Héracles contra Aquelôo. Na região grega de Etólia, segundo Luciano, a luta de Héracles contra o rio era representada por uma dança (21).

(17) Philostrate Héroique, p. 735 Ed. Olear (citado por A. Chassang em Histoire du Roman p. 353, Didier, Paris, 1862.

(18) Citado por Joseph Fontenrose Python p. 233, University of California Press, 1980.

(19) Idem Ob. Cit. p. 233.

(20) Sófocles Traquinianas Vs. 9-14.

(21) Lucien, De la Danse, Oeuvres Completes de Lucien, T-I, p. 551, Gamier Frères, Paris, 1896.
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Fig. 2 — Combate alegórico de Héracles contra o Rio Aquelôo.

Outra criatura mitológica que se confunde com o mesmo monstro vencido por Cadmo é a Hidra de Lerna, cujo nome significa serpente de água. Representada com numerosas cabeças, seu número varia segundo os autores, de cinco até cem, sem nenhum em especial ser favorecido (22). (Fig. 3). Alguns autores informam ademais que, tão logo uma cabeça era cortada, outra ou mais de duas ressurgiam. Hesíodo, o geógrafo da mitologia, indica que essa criatura encontrava-se no apartado país dos Arimanes, debaixo da Terra (23).

Sempre houve a suspeita de que por trás da lenda de Héracles combatendo a Hidra de Lema e o Rio Aquelôo existissem fatos reais; mas, ainda que se fosse possível demonstrar a existência destes fatos, dizia Moreau de Jonnés (24), nem por isso o mito seria totalmente explicado; restaria saber como e por que motivo a realidade foi oculta nesse requintado atavio alegórico. Talvez nunca consigamos uma explicação completa para essas lendas, mas, ainda assim, a partir da versão de Ovídio, tentaremos retirar o véu que durante milênios encobre a realidade escondida no mito de Cadmo.

(22) Rose H. J., A Handbook of Greek Mythology, p. 212, Mathuen & Co., London, 1974.

(23) Hesíodo, Teogonia V. 314-318.

(24) Moreau de Jonnés, Los Tiempos Mitológicos, p. 25, Madrid, 1910.

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Fig. 3 — Luta de Héracles contra a Hidra de Lerna.

Cadmo, cujo nome semítico significa “Leste”, pela tarefa realizada, se relaciona com o vigoroso matador da Hidra, Héracles, classicamente identificado como Melkart, o “senhor da Villa” semítico (25). Considerado um herói civilizador, que recorre à terra, colonizando e civilizando a humanidade, vencendo feras; Melkart também é considerado protetor da navegação, ocupação constante e principal dos fenícios. Alguns deuses freqüentemente se confundem com este herói; como Hermes Pompaios, ou seja, Hermes condutor, chamado assim pelos gregos porque diziam que era encarregado de conduzir as almas para o Inferno; e Apolo, o matador do monstro Pitão. A pluralidade de heróis e deuses relacionados a combates contra serpentes e dragões nos adverte que por este caminho seria em vão tentar abordar o mito. Não temos outra alternativa senão enfrentar o Dragão.

Cadmo talvez tenha matado diversas serpentes, de diversos tamanhos, mas a “serpente” que o imortalizou, salvo o aspecto, nada teria a ver com os répteis. Para comprovar isto devemos prestar atenção ao enorme tamanho da criatura, declarado nos versos 44 e 45: “O corpo, se o vires por inteiro, é tão grande quanto o da serpente que separa as duas Ursas”. Isto é, seria comparável a Draco, constelação boreal situada entre a Ursa Maior e Ursa Menor. Não se trata de uma hipérbole literária, estamos frente a uma alegoria mitológica, que esconderia uma realidade (27). Esta realidade aparece considerando ao pé da letra o verso 45.

(25) Chamado herói de Tiro; Vide nota 1, p. 35. La Déesse Syrienne de Lucien de Samosate; Trad. Mario Meunier; Guy Trédaniel; Ed. de la Maisnie, Paris, 1980.

(26) Eschyle Les Eumênides V. 90.

(27) Referindo-se ao significado da alegoria, Pausânias diz o seguinte (L. VIII, C. VIII): “Ao começar a escrever minha história senti-me inclinado a relatar as lendas como se fossem disparates, porém encontrando-me na Arcádia adquiri uma visão mais cuidadosa em relação ao seu significado”. A seguir: “Aqueles entre os helenos que foram considerados como sábios, no seu tempo, exprimiram seus pensamentos, não como agora, de forma direta, mas indireta, sob a forma de enigmas”. Logo Pausânias relata como naqueles tempos, obedecendo a um oráculo, o Rio Ofis da Arcádia recebeu o nome homônimo (ofis significa serpente) de um dragão ou de uma serpente. A palavra allhgoria (alegoria) foi usada pela primeira vez por Cícero (Orat. 27) e por Plutarco (De la lecture des Poètes). Antes desses autores, o significado simbólico ou alegórico denominava-se upouoia, suposição ou conjectura. Os espíritos reflexivos e os críticos que tentaram penetrar no significado dos mitos, diz Paul Decharmes, estavam persuadidos de que além de seu significado exterior e aparente, os mitos tinham outro interior, que permanecia oculto. “Toda a poesia é enigmática pela sua natureza”, diz Sócrates em IIª. Alcibiade. Paul Decharmes, La Critique des Traditions Religieuses chez les Grecs p. 272, Alphonse Picard et Fils, Ed., Paris, 1904.

Pela Astronomia sabemos que as distâncias entre os astros na esfera celeste são comparáveis com as distâncias geográficas sobre a terra, quando projetamos seus respectivos segmentos de arco sobre uma esfera. A projeção polar do arco formado entre Tanin, estrela da cabeça de Draco, e Giansar, no extremo da cauda, mostra a coincidência de Draco com a extensão do Rio Amazonas, Fig. 4. A perfeita coincidência dos respectivos arcos é o resultado favorável de comparar um arco maior, próximo ao pólo, com um segmento de arco menor próximo ao equador, usando coordenadas polares. A rigor, como indica um cálculo trigonométrico detalhado, o segmento de arco subtendido pela constelação de Draco, excede em 15º o arco geodésico entre a nascente e a desembocadura do Amazonas. Esta discrepância não invalida a interpretação, já que se trata apenas de uma comparação dos respectivos arcos e não de uma medida exata de seus valores.

A presente interpretação, que identifica a luta épica de Cadmo e Héracles contra uma imensa serpente (às vezes explicitamente localizada no mundo inferior) como uma alegoria que representa a conquista do Rio Amazonas, permite compreender o significado das cabeças da Hidra. As cabeças corresponderiam aos principais afluentes do Amazonas, que, segundo os critérios, podem ser dois, cinco, ou mais de cem. Basta dar uma olhada sobre uma carta para ver a intrincada rede fluvial da bacia amazônica (Fig. 2, Cap. II do livro). Se alguém em vez de navegar pelos rios tentasse “cortá-los” em linha reta, isto é, abrir caminhos através da floresta cortando-a e queimando-a, para cada rio que “cortasse”, apareceria em seguida outro ou mais de um, de modo que o explorador aventureiro teria a impressão de que os rios vencidos a cada dia cresceriam em progressão aritmética.

Para localizar a terra na qual Cadmo deveria construir uma cidade, devemos decifrar o oráculo de Febo (Vs. 10-18). Febo (foiboV) significa “O brilhante”. Trata-se de um sinônimo mitológico, já que é um dos nomes de Apolo, a quem se atribuía o poder de emitir oráculos e também com este nome se denominava o sol. Nos versos 20 e 21, “A novilha parou e, elevando ao céu sua vistosa fronte ornada de altos cornos …”, encontramos uma alusão à constelação de Touro, na qual situava-se o equinócio vernal durante o 4º e 3º milênios, considerado o início de ano na astronomia arcaica.

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Fig. 4 Projeção – em coordenadas polares – das constelações boreais circumpolares (setor de 210º),
sobre a América do Sul (setor de 60º), que permite visualizar a extensão da constelação de Draco sobre a superfície terrestre.

Os mitógrafos da Antigüidade identificaram a constelação do Touro como a representação celeste do deus metamorfoseado que teria raptado Europa. Por esta associação a constelação era chamada Portitor (barqueiro), Europae ou Agenoreus, assim denominada por Ovídio, referindo-se à raptada e a seu pai, respectivamente. Marcial ainda denomina-a Tyrius, referindo-se a Tiro, país de Cadmo (28). Segundo o mito, Europa teria sido raptada pelo Deus e transportada sobre o mar, montada no flanco do Touro imerso das ondas; conseqüentemente, a constelação foi representada mostrando unicamente a parte dianteira. Esta é, justamente, a impressão que causa certas noites do ano a constelação do Touro, quando parece pousar suavemente e de flanco sobre o horizonte ocidental do mar. Os navegantes de Tiro, guiados pelo Sol e pelas estrelas, depois de cruzarem o Atlântico e chegarem às costas do Brasil, ao elevarem seus olhos para a constelação do Touro, enquanto escutavam as ondas quebrando na praia, teriam observado o quadro imortalizado nos versos 20 a 23: “…a novilha parou e, elevando ao céu sua vistosa fronte ornada de altos cornos, encheu o ar de mugidos; e então, virando-se para ver os companheiros que a seguiam, estendeu-se de flanco sobre a tenra relva”.

Guiado por Febo (isto é, pelo oráculo e pelo curso do Sol) e pela constelação do Touro, Cadmo alcança uma terra desconhecida V. 24, 25: “Cadmo agradece, beija a terra estrangeira e saúda os montes e campos desconhecidos”. Desembarca numa floresta virgem, segundo o verso 29: “Uma antiga floresta jamais violada pelo machado se elevava..”.

(28) Portitor, segundo Virgílio, significa barqueiro e, segundo Stace, aquele que leva ou traz alguma coisa. Para mais informações sobre esta constelação, consultar: Star Names their Lore and Meaning, Richard Hinckley Allen, Dover, New York, 1963.

O início da luta contra a “serpente”, na presente interpretação geográfica, corresponde ao descobrimento do Rio Amazonas e conseqüentemente do Brasil. A posição geográfica da desembocadura do rio parece encontrar-se no verso 50 : “O sol a pino já fazia exíguas sombras…”. Sol a pino ou sol no máximo de seu curso significa sol de meio-dia, porém é muito improvável que a hora tenha alguma importância no descobrimento de um novo continente. Havemos de convir que neste verso se encontraria “encapsulada” a informação geográfica do lugar onde os estrangeiros de Tiro empreenderam a luta contra a enorme “serpente aquática”. Corresponderia à linha equatorial, lugar geográfico no qual, em média, as sombras ao meio-dia são mais curtas que em qualquer outra latitude da Terra.

A seguir os versos de Ovídio descrevem poeticamente a luta para vencer uma imensa serpente, furiosa, que se curva e contorce sobre si, formando imensos círculos. Não é difícil notar que estes versos podem corresponder às descrições alegóricas das inúmeras ilhas e ao sinuoso curso do Rio Amazonas. Quem teve a experiência de conhecer de perto o majestoso rio reconhece nessas descrições poéticas o reflexo natural que causa no espírito esse monstro da natureza. “O Amazonas é, sem dúvida, o máximo dos rios”, disse o Padre João Daniel na sua descrição pré-científica do Amazonas (29) que diz ser chamado Paraná Petinga (mar branco) pelos naturais, ainda que seu nome indígena mais comum pareça ser Paraná Uasú (grande mar), na língua tupi (30) e, sem fazer a mínima alusão ao mito de Cadmo, o padre também imaginou o Rio Amazonas como se fosse um dragão descomunal. Eis aqui como o descreve: (sic) “ainda que, se há bichas de sete cabeças não é muito que este mar natante seja bicha de duas cabeças e gigante de dois braços”.

A alegoria tebana da serpente é uma obra-prima de criatividade poética; entretanto, não conseguiu transfigurar completamente a verdadeira natureza do “monstro aquático”, como revelam os versos 77-80, por exemplo: “Ora se enrosca em espirais que fazem uma volta imensa, ora pára mais ereta do que um longo tronco, ora num enorme ímpeto, como um rio empurrado pela tempestade, se precipita e derruba com o peito as florestas que lhe são como obstáculos”.

O hálito envenenado da serpente, citado no verso 49: “Mata (os navegantes de Tiro) com o sopro podre do funesto veneno”, lembra o Styx, rio do Inferno, descrito por Hesíodo como “um lugar penoso e úmido que mesmo os deuses consideram horrendo”. Nos versos 32 e 33 encontramos uma alusão ao ouro, particularmente abundante nos Andes peruanos: “A crista notável pelo ouro, os olhos brilham como fogo, todo o corpo está cheio de veneno”. Nesta alegoria, o brilhante metal, que incitou os homens de todos os tempos a realizar as mais arriscadas empresas de navegação, parece estar associado a vulcões. Com efeito, uma dezena de vulcões historicamente ativos – como olhos de fogo – encontram-se nos Andes, em particular nos Andes Orientais do Equador. Das encostas destes últimos nascem diversos rios que vertem suas águas no Napo, Pastaza e Santiago, importantes afluentes do Rio Marañón.

(29) Padre João Daniel, Tesouro Descoberto no Rio Amazonas (obra escrita na sua maior parte nos cárceres do Forte de Almeida, durante os anos de 1758 —1762). Anais da Biblioteca Nacional, Vol. 95, T-I, Cap. I, p. 27, Rio de Janeiro, 1975.

(30) Armando Levy Cardoso, Toponímia Brasílica, p. 185, Rio, 1961.

A existência de um período com intensa atividade vulcânica nos Andes, que a interpretação geográfica do mito de Cadmo parece sugerir, permitiria compreender o significado dos versos 72 a 76: “Então uma nova causa acrescenta-se às suas iras costumeiras (entende-se, do rio, que neste ponto da luta corresponderia às suas nascentes), sua garganta se enche com as veias intumescidas de sangue e uma espuma esbranquiçada escorre em volta de seus lábios pestilentos e a terra, sobre a qual desliza, ressoa sob suas escamas; um hálito negro sai de sua boca, como a Estígia (31), e infecta o ar contaminado”. A espuma que escorre dos lábios pestilentos da serpente, ou seja, do rio, seria uma descrição poética de um material vulcânico muito leve e poroso, que chega a ser menos denso que a água. Quando esse material condensa, depois de escoar pelas fissuras e bocas vulcânicas, é chamado pedra-pomes. Fragmentos de pedra-pomes foram vistos freqüentemente boiando nas águas do Amazonas. Segundo Antonio Raimondi, a pedra- pomes, desprendendo-se de algum terreno vulcânico situado no Equador, pelo qual passa o Rio Pastaza, era arrastada pelas águas do rio, para continuar boiando no Amazonas (32).

A associação de atividade vulcânica com a Hidra de Lerna pode ser facilmente identificada na literatura grega. Referindo-se ao fétido odor do Rio Anigrus, que nasce numa montanha de Arcádia, Pausânias diz que a desagradável exalação era atribuída ao veneno da Hidra (33). As exalações aludidas por Pausânias não são outras que os gases usualmente emitidos pelas fontes termais sulfurosas e nas proximidades de vulcões ativos.

(31) Chamado Styx (Stux) pelos gregos.

(32) “Sobre las tranquilas aguas del caudaloso Rio Amazonas, se ven bajar muchos trozos de piedra pómez, que vienen desde el centro de la República del Ecuador, por la província del Pastaza”. A Raimondi, Minerales del Peru, p. 283, Lima, 1878.

(33) Pausânias T-II, V. 10; p. 407 Loeb. Classical Lib., London, 1977.

A topografia da “serpente” leva a soluções insuspeitadas, que se mostram com espontânea naturalidade. Alguns versos misteriosos ainda ocultam seus significados; não é fácil imaginar o sentido do verso 34, por exemplo: “Três línguas vibram em sua boca”, porém, a seguir, o verso 35, que descreve as fauces da serpente: “os dentes se arrumam numa tríplice fileira” é muito significativo. Os mitógrafos da antiguidade, inclusive Apolônio de Rodes, narram a semeadura dos dentes do Dragão no sentido óbvio, seja real ou simbólico; ninguém fez a mínima insinuação da possível identificação com as montanhas, que efetivamente são odonto.edhV! isto é, em forma de dentes. Agora, a presente interpretação nos leva a considerar esta possibilidade na topografia dos Andes. A cordilheira dos Andes é formada por elevadas montanhas cobertas de neve, que percorrem o lado ocidental da América do Sul. A partir do planalto do Collao, onde se encontra o lago Titicaca, a cordilheira se subdivide em três ramais principais que ao norte se reúnem em dois lugares: em Pasco, na região central do Peru, e em Loja, no Equador. Portanto, se a serpente que vence Cadmo é uma alegoria do Rio Amazonas, a tríplice fileira de montanhas, onde se encontram as cabeceiras do rio, pode ter inspirado a tríplice fileira de dentes atribuída ao Dragão. Com esta perspectiva, a semeadura de Cadmo significaria que o herói civilizador cultiva ou ensina o cultivo desses “dentes”; isto é, da cordilheira andina, por ordem da deusa Palas.

O prodígio incrível descrito por Ovídio, “a miraculosa colheita dos dentes do Dragão”, permitiria deduzir que Cadmo, ao chegar aos Andes do Peru, em vez de encontrar selvagens na idade da pedra, encontra uma multidão armada, obcecada numa luta fratricida; isto é, encontra um povo suficientemente “civilizado” a ponto de matar-se entre si numa funesta guerra civil; com flechas, lanças e quanto de mortífero o deus da guerra – chamado Aucayoc (34) pelos antigos peruanos – pôs nas suas mãos.

Estranha coincidência! cerca de 3.000 anos mais tarde, os conquistadores espanhóis, chamados viracochas pelos nativos peruanos, veriam descortinar-se as mesmas cenas bárbaras de uma luta fratricida. Nessa ocasião, os guerreiros disputavam um império decadente, dividido entre Huáscar, o legítimo herdeiro de Cuzco, e seu irmão Atahualpa, facilitando assim a conquista espanhola.

CADMO E VIRACOCHA

Existe algum herói civilizador andino nas tradições pré-colombianas que corresponda a Cadmo? A seguir iremos discutir esta possibilidade, sugerindo que, se tal figura existisse, poderia formar parte do conjunto mítico-religioso de Viracocha.

A semelhança da hecatombe que os gregos ofereciam aos deuses nas grandes ocasiões, no Peru também, nas grandes festas cuzquenhas, particularmente na festa do Intip Raimi, que celebrava o solstício de junho, o inca oferecia cem lhamas em sacrifício ao Sol (35). Nesta oportunidade, respeitando antigas tradições, cada província era representada pelos seus principais curacas que traziam disfarces e máscaras, com os quais mantinham vivas as façanhas de seus heróis. Alguns dos disfarces chamavam particularmente a atenção; segundo Garcilaso, os índios chancas, da atual região de Ayacucho, cobriam-se com uma pele de puma (felix concolor) e com a cabeça posta na cabeça da fera pareciam a imagem de Hércules (36).

(34) Nome de Marte, deus da guerra na mitologia quéchua, segundo Blas Valera, Las Costumbres Antigas del Peru. Transcrito por Francisco A. Loayza em los Pequenos Grandes Libros de História da América. Série I, Tomo VIII, Lima, 1945.

(35) Polo de Ondegardo (1571), Religión y Gobierno de los Incas, p. 21, T-III Colec. de Lib. de Hist. del Peru, Lima, 1916.

(36) Garcilaso de la Vega, Comentários Reales de los Incas, Lib. IV, Cap. XV; Lib. VI, Cap. XX.

A notícia mais reveladora sobre um deus e civilizador solar se encontra no ciclo de mitos de Viracocha. A origem de Viracocha, de seu estranho nome que significa “graxa de mar” e das lendas que o cercam formam parte do grande enigma da civilização incaica. Entre as diversas e confusas narrações recompiladas após a conquista espanhola, ressalta-se a de Pedro Gutierez de Santa Clara, de fins do século XVI por ser simples e informativa.

Nos povoados de Paita, Puerto Viejo e na Ilha Apuná, relata Gutierez (37), desde tempos imemoráveis os índios usavam umas balsas de madeira leve (madeira balsa) e canas, com velas triangulares e timão de popa. Dizem que esta maneira de navegar seus antepassados a aprenderam de um homem que veio pelo mar, aportando nessas costas numa balsa com velas como até agora eles usam. A este homem chamaram Viracocha, que significa “espuma de mar” ou “graxa de mar”, que foi engendrado pelo mar, sem pai nem mãe. Como os espanhóis chegaram navegando pelo mar, analogamente, foram chamados viracochas. Este curioso fragmento do acervo perdido de tradições mitológicas da costa norte do Peru mostra um viracocha-navegante; apenas uma faceta entre muitas do complexo mitológico de Viracocha.

(37) Gutierez de Santa Clara; citado por Henrique Urbano em Wiracocha y Ayar, p. 16, Cuzco, 1981.

As ruínas do templo principal dedicado a Viracocha se encontram em Cacha, no atual povoado de San Pedro de Cacha, situado nas margens direitas do Vilcanota, rio considerado sagrado pelos incas, a 120km ao sul de Cuzco, caminho a Puno. No templo de Viracocha havia uma estátua esculpida em pedra; Garcilaso, baseando-se provavelmente nos manuscritos de Blas Valera, a descreve com estas palavras (38): “Era (como) um homem de elevada estatura, com barba comprida de mais de um palmo; seus vestidos eram amplos como uma túnica ou batina, chegando até os pés. Tinha um estranho animal, de figura não conhecida, segurado com a mão por uma corrente”. Outro cronista, Cieza de Leon, que efetivamente passou por Cacha, relata ter visto a estátua de Tice Viracocha, porém nada fala da barba, diz (39): “Em memória de seu deus Tice Viracocha, a quem chamam criador, construíram este templo e puseram nele um ídolo de pedra da estatura de um homem, com vestimenta e uma coroa ou tiara na cabeça”. Não temos mais a esperança de verificar algum dia o aspecto da estátua, por ter sido quebrada pelos iconoclastas espanhóis. As suas descrições não correspondem com a imagem que temos de Cadmo e Hércules, porém é instrutivo lembrar que os mesmos deuses ou heróis não foram representados sempre da mesma maneira por quem os adotou na sua religião. Luciano de Samosate (40), referindo-se ao Apolo sírio, cita um exemplo: a estátua de Apolo no templo de Hierápolis, diz Luciano, em vez de mostrar um adolescente desnudo, de acordo com as representações do Apolo grego, era representado por uma estátua de um homem adulto, vestido e com barba.

(38) Garcilaso de la Vega, Comentários Reales de los Incas, Lib. V, Cap. XXII.

(39) Pedro Cieza de León, La Crónica del Peru, Cap. XCVIII.

(40) Lucien de Samosate, La Déesse Syrienne, XXXV, trad. Mario Meunier; Guy Trédaniel; Ed. de la Maisnie, Paris, 1980.

QUANDO OCORREU O EVENTO MITOLÓGICO DE VIRACOCHA?

Viracocha literalmente significa graxa ou espuma de mar, na língua quéchua. Nas tradições peruanas com este nome se descrevem navegadores mitológicos, predicadores, taumaturgos, legisladores, e até ao próprio criador do universo chamavam com este nome. Viracocha é uma entidade mitológica de grande complexidade. Em relação à teologia dos gregos pela etimologia pode ser relacionado com Afrodite, que os mesmos gregos conectaram com a espuma do mar (aphros, espuma). Hesíodo (41) diz que Afrodite havia nascido das águas após a mutilação do órgão reprodutor de Urano (céu) por seu filho Cronos. Do mar surge uma branca espuma e desta espuma nasce Afrodite.

Segundo algumas tradições peruanas, Viracocha, como criador, civilizador e legislador, aparece numa época de obscuridade e trevas. Por outros cronistas, a sua presença é relacionada com um fenômeno que parece descrever uma erupção vulcânica. Não sabemos como foram transmitidas estas informações, apenas podemos conjecturar que os responsáveis por este fato foram os kipukamaios, usando um sistema mnemônico de cordas com nós, chamado kipus. A narração que estabelece a contemporaneidade da erupção vulcânica com a presença de Viracocha diz que na região de Cacha, para castigar os índios Canas que adoravam uma deusa situada nos pontos mais elevados das montanhas, Viracocha fez descer um pavoroso fogo do céu, e, como reação, a cúspide do cerro vizinho a Cacha pareceu fundir-se como cera (42, 43, 44).
Viracocha também é descrito como um venerável ancião com barbas, levando um cajado na mão (45). Pelo aspecto, os cronistas trataram de identificá-lo com algum personagem histórico. Influenciados pela forte pressão religiosa dos séculos XVI e XVII, interpretando as trevas, que segundo as tradições peruanas precederam a chegada de Viracocha, com as trevas da morte de Cristo (46) imaginaram que podia tratar-se de algum apóstolo e, pelo conteúdo moral e religioso das lendas de Viracocha, foi identificado como Santo Tomás (47).

Antigas crônicas espanholas indicam a existência de pedras pretas, vitrificadas e muito leves, nas proximidades de Cacha, que permitem inferir a existência de um vulcão extinto nessa localidade. Devido à falta de informações mais precisas sobre a natureza e a época do evento vulcânico, o autor realizou uma viagem de reconhecimento ao vulcão em fevereiro de 1985.

Do templo de Viracocha restam apenas alguns muros e as bases de algumas colunas cilíndricas. A construção desse edifício ocupa uma área retangular de 92m de comprimento por 26m de largura, orientada no sentido N-S. No meio existe uma elevada parede de 12m de altura (48).

(41) Hesíodo, Teogonia V. 155-200.

(42) Juan de Betanzos (1551), Sinna y Narración de los Incas, Biblioteca Peruana, T-III; p. 208, Ed. Técnicos Assoe. S/A, Lima, 1968.

(43) Pedro Cieza de León (1553), El Senorio de los Incas, Cap. V, Instituto de Estúdios Peruanos, Lima, 1967.

(44) Pedro Sarmiento de Gamboa, História de los Incas, Cap. VIII, p. 108, AMECE Ed. S/A, Bs As, 1943.

(45) Juan de Santacruz Pachacuti Yamqui (1613). Citado por Henrique Urbano Viracocha y Ayarp. 21; Cuzco, 1981.

(46) Bíblia: Mateus 27,45; Marcos 15,33; Lucas 23,44.

(47) Juan de Santacruz P.Y. situa este evento no tempo de purwnpaclia. Segundo a tradição aimará, Viracocha é chamado pelo nome de Tonopa Viracocham — pacachan, identificando-o com Santo Tomás, Ob. Cit.

(48) Manuel Cháavez Ballón “El sitio de Raqchi y el Templo de Viracocha” em K’anchi por Vicente Guerra Carreno; Lima,1982.

Os fundamentos do edifício indicam que as paredes foram construídas usando grandes blocos de pedra, talhados e ajustados entre si com notável maestria. O modesto muro de adobe, superposto ao mais nobre de pedra, contrasta pela baixa qualidade indicando que se trataria de uma reconstrução posterior, possivelmente para preservar a estrutura original. O templo de Viracocha é o edifício incaico mais elevado que se conhece. Além de suas dimensões, o que mais chama a atenção são as colunas de grande diâmetro, das quais apenas restam as bases construídas em pedra, segundo a mesma técnica dos muros. O templo tinha 11 colunas eqüidistantes, alinhadas a cada lado da parede central, dando lugar a 12 vãos a Oriente e outros tantos a Ocidente.

A menos de um quilômetro do templo está o vulcão extinto Quinsachata. Seu nome quéchua significa três irmãos, devido a três cerros que rodeiam a cratera, que é cônica e possui aproximadamente 100m de diâmetro. Em pouco menos de uma hora de subida, ajudado pelo filho do guardião desse sítio arqueológico, o autor conseguiu chegar até a cratera, que não é difícil de penetrar. Por todo lugar, esparsos, vêem-se fragmentos piroclásticos de rocha negra e porosa de diferentes dimensões. Esses fragmentos, também chamados bombas, foram ejetados pelo vulcão durante a erupção.

Um fragmento piroclástico negro, de aspecto vítreo, e muito poroso, como a maior parte das rochas que cobrem o solo de Cacha, foi submetido à análise espectroscópica. O resultado da análise indica que a rocha está constituída, principalmente, por um silicato de alumínio, cálcio, magnésio e sódio. O teor elevado de sódio indica que se trata de uma lava bastante fusível e a cor preta pode ser atribuída à presença de ferro e titânio.

A observação das rochas vulcânicas in situ indica pouca erosão, apesar de serem muito porosas e o clima bastante severo, dando a impressão de uma erupção vulcânica geologicamente recente, que parece confirmar as tradições mitológicas. Devido a estas considerações não foi tentada a datação direta das amostras de lava, já que, pelos poucos milênios que teriam transcorrido desde a erupção, nenhuma das técnicas físicas disponíveis seria adequada para este propósito (50).

Afortunadamente, podemos ter uma idéia da antiguidade mínima dessa erupção vulcânica, sem a datação direta da lava. Um conhecido arqueólogo peruano, Manuel Chavez Bailon, proporcionou essa informação ao autor dias antes da visita ao vulcão. Ele afirmou ter achado, entre as fissuras da lava, fragmentos de cerâmica classificada como Tipo A de Marcavalle, datados entre 1.200 e 1.400 anos a.C. Isto significa que o vulcão entrou em erupção numa época anterior à data da cerâmica; indicando que o evento mitológico, narrado nas tradições peruanas, ocorreu há pelo menos 3.200 anos. Isto invalida definitivamente a tese eclesiástica; conseqüentemente, Viracocha deve ser incluído na esfera de eventos relacionados com as origens das antigas culturas peruanas, na época que os especialistas denominam formativo, quando, junto a outras técnicas, aparece também a fabricação da cerâmica.

A maioria de especialistas não deu a merecida atenção aos mitos peruanos que relatam cataclismos, à exceção de Julio C. Tello e Toribio Mejia Xesspe, que interpretam esses mitos como tradições orais, que teriam sido conservadas pelo povo andino desde três a cinco mil anos atrás (51). Estes arqueólogos, após considerarem uma série de lendas que parecem relatar um cataclismo, chegam à conclusão de que se trataria de tradições legítimas, que relatam um fenômeno telúrico de grandes proporções, relacionado com as fortes perturbações das capas estratigráficas mais recentes observadas em diversas regiões do Peru, e que teria acontecido no período formativo. Concluem os autores citados que na área dos Andes ocorreu um cataclismo e que o prolongado escurecimento do céu ou eclipse, citado no mito de Huarochiri (52), teria sido causado por partículas de pó suspensas na atmosfera, resultado de violentas comoções sísmicas associadas a erupções vulcânicas.

Para confirmar as conclusões dos arqueólogos citados, temos ainda outra evidência que pode ser encontrada no trabalho de Augusto Cardich. Este autor resume os resultados das escavações estratigráficas realizadas na gruta de Huargo, a 4000m sob o nível do mar, situado no departamento de Huánuco (53). Apesar de não existirem vulcões num raio de centenas de quilômetros, nas escavações de Huargo foram localizadas duas camadas de terra contendo cinzas vulcânicas. A mais antiga, que contém a maior concentração de cinzas (10%), foi datada por radiocarbono em 1.620 ± 230 anos a.C. Neste estrato, que na época do seu assentamento deve ter causado um profundo escurecimento no céu, foram achados os fragmentos da mais antiga cerâmica descoberta nessa região andina.

(49) Análise realizada pelo engenheiro Luiz Fernando de Carvalho, nos Laboratórios CETEM do Rio de Janeiro.

(50) O autor agradece ao dr. G. Poupeau pelo esclarecimento sobre métodos de datação e suas limitações.

(51) Julio C. Tello y T. Mejia Xesspe. Paracas IIa Parte, cap. 3, Lima, 1979.

(52) “Contaremos ahora una história concercniente a la muerte del sol”. “Antiguamente el sol murió. La oscuridadie dura cinco dias. Entonces las piedras se pusieron a golpear unas contra otras. Los morteros y las piedras de moler a comerse los hombres y las llamas aperseguirlos”. Francisco de Avila, Manuscrito quechua, cap IV. Traduzido por Gerald Taylor, Ed. L’Harmattan, Paris, 1980.

(53) Augusto Cardich, Excavaciones en la Cueva de Huargo, Revista del Museo Nacional, T-39, pág. 11-29, Lima, 1973.

 

ARQUEOLOGIA RELATIVA AO MITO DE CADMO

A interpretação geográfica do mito de Cadmo presume a existência de instrumentos de navegação, apropriados para a medida de arcos; mas, onde está o goniômetro que possa servir de prova? Para defender teses de navegação transatlântica durante o segundo milênio, é necessário comprovar a existência de sólidas embarcações. Que evidências nos oferece a arqueologia?

Os elementos arqueológicos a favor da difusão transatlântica são abundantes e já foram apontados por diversos autores (54, 55). O que discutiremos a seguir está nos museus, representando uma comédia exibida com muita seriedade no palco da ciência.

O Museu de Antropologia e Arqueologia de Lima exibe um rústico monumento de pedra, de aproximadamente 60cm de altura. Encontra-se num dos corredores sem nenhuma indicação que atenda à curiosidade do visitante; talvez as autoridades do museu suspeitem de seu significado, porém não ousaram identificá-lo. Afortunadamente não tem a identificação proposta num guia de Sechin (56). Os autores deste guia, sem justificá-lo, presumem que a figura representa uma omoplata.

O monólito considerado foi achado no sítio arqueológico de Sechin (Casma), relacionado com a cultura Chavin e situado na costa peruana, ao norte do Departamento de Lima. Os restos mais antigos de carvão encontrados no templo principal de Sechin, datados por radiocarbono (57), indicam uma antiguidade de aproximadamente 1.000 anos a.C. Presume-se que os monólitos com figuras, encontrados em Sechin, têm pelo menos essa antiguidade. O desenho representa uma figura geométrica gravada na pedra com bastante profundidade. Fig. 5. A tosca figura sugere um quadrante com o cursor a meia escala (58). No vértice do quadrante se apresentam dois círculos concêntricos, como se esperaria que tivesse um instrumento que permitisse a rotação e ajuste do cursor. Não é necessário um grande esforço de imaginação para notar que nesse monumento pode estar a representação do mais antigo goniômetro construído pelo homem. A Fig. 5 (b) mostra o esquema de um quadrante para medidas de altura – azimute, semelhante ao instrumento usado pelo astrônomo Tycho Brahe (59), na segunda metade do século XVI. A ausência da escala no quadrante de Sechin poderia explicar-se devido ao tempo. Pelo uso prolongado, a escala, composta de riscos finos, poderia estar apagada no protótipo original; no caso de ter sido gravado em pedra como a representação de um símbolo ou relíquia, é muito provável que desde então tornara-se um objeto sem uso prático, neste caso, também os finos traços da escala, pela sua insignificância, dificilmente seriam representados.

(53) Augusto Cardich, Excavaciones en la Cueva de Huargo, Revista del Museo Nacional, T-39, pág. 11-29, Lima, 1973.

(54) Dick Edgar Ibarra Grasso, America en la Prehistória Mundial (difusión greco-fenícia), Buenos Aires, 1982.

(55) Barry Fell America A. C. (los colonizadores del Nuevo Mundo) Ed. Diana, México, 1983.

(56) Arturo Jimenez Borja y Lorenzo Samaniego Roman, Guia de Sechin, Casma – Peru, 1973.

(57) Rogger Ravines, Panorama de la Arqueologia Andina, p.160, Instituto de Estúdios Peruanos, 1982.

(58) Dick E. Ibarra Grasso na pág. 181 da Ob. Cit. também identifica o desenho de Sechin como instrumento náutico, chamando-o de quadrante.

(59) Nature nº 15, p. 409, March 8, 1877.

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Fig. 5 —Monólito de Sechin (c. 1.000 a.C.) com figura esculpida em baixo relevo, análoga ao quadrante desenhado ao lado.
Pouco sabemos das embarcações que sulcavam as águas do Mediterâneo, de suas rotas e portos de destino, durante o 2º milênio a.C. Apenas por indícios é possível deduzir que o porto de Ugarit acomodava grandes embarcações. Pelas dimensões de uma âncora de pedra achada neste porto fenício, Miss Honor Frost estimou que a embarcação deslocava 200 toneladas (60). A maior surpresa encontramos num famoso museu, exibida sob a ingênua identificação de embarcação funerária.

No Museu Nacional de História, em Chicago, encontra-se uma embarcação de cedro de 32 pés (9,6m) de comprimento (61). Esta embarcação formou parte das oferendas funerárias do Rei Sesostris (Senusret) III, que pela cronologia histórica viveu ao redor de 1.800 anos a.C; entretanto, pela datação mediante radiocarbono realizada no casco de cedro da embarcação, a idade indica 1.670 ± 180 a.C. A embarcação foi enterrada perto da sua pirâmide, em Dahsur. Os egiptólogos interpretaram esta oferenda funerária como parte de um ritual religioso: como sendo a embarcação que transportaria a alma do faraó através das águas, para alcançar o mundo inferior. Já indicamos que o mundo inferior ou Hades, como era chamado pelos gregos, poderia ser uma referência à América. Note-se o desenho robusto e elegante do casco desta embarcação, Fig. 6, construída com grossos pranchões de cedro, adequado até para enfrentar o oceano. Quando os egiptólogos, retificando um erro histórico, aceitarem a hipótese da navegação transoceânica nessa época, poderão escrever a seguinte errata: Onde se diz “com esta embarcação de cedro Sesostris III planejava navegar ao mundo dos mortos” – diga-se – “com esta embarcação de cedro Sesostris III planejava navegar à América”.

(60) Citado na pág. 131, nota 7, The Cambridge Ancient History II – Part 2, Cambridge, 1975.

(61) The National Geographic Magazine V. 114 N – 2, Aug. 1958. Washington, D. C.

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Fig. 6 – Embarcação de cedro mediante a qual Sesostris III planejava navegar até o inferno (1670 +180 a.C.)

Outro modelo em escala natural de uma embarcação oceânica pode estar mascarado sob o nome de “barca funerária de Queops”. Trata-se de uma magnífica obra de engenharia naval, de 42,6m de comprimento (62). Fig. 7. Algumas das pranchas de cedro usadas nessa embarcação medem 18m. As maiores embarcações saídas dos estaleiros do Egito, segundo os registros escritos na pedra de Palermo, foram construídas pelo rei Sneferu (63). Ele trouxe ao Egito quarenta embarcações carregadas de madeira. Com esse material construiu 44 embarcações, algumas de até 100 cúbitos, equivalente a 51m de comprimento.

(62) The Cambridge Ancient History V-I Part 2, p. 347, 3rd Ed.

(63) Idem, p. 346.

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Fig. 7 – Modelo de embarcação oceânica, com 42,6m, achado junto a pirâmide de Quéops.

Se conseguirmos imaginar uma elegante embarcação, com a empertigada proa coroada por uma carranca deslizando sobre a “sinuosa serpente”, como poucos anos atrás embarcações semelhantes sulcavam as águas do São Francisco, teremos conseguido visualizar a embarcação de Cadmo. Pausânias permite este vôo de imaginação, reportando que em Tebas havia três imagens de Afrodite, esculpidas na madeira que procedia da carranca do barco de Cadmo (64).

Cadmea, a cidadela tebana que Cadmo fundou em Beócia (Grécia), foi descoberta e escavada. Entre os restos que acusam um incêndio de grandes proporções, foram encontradas jarras para armazenar vinho e azeite; fragmentos contendo inscrições tipo Linear B, confirmando a conexão minóica; fragmentos de marfim, dos objetos de arte que decoravam as suntuosas habitações do palácio, mostrando a opulência e luxo de seus habitantes. Também foi achado um tesouro de pedras semipreciosas, inclusive 39 cilindros de lápis-lazúli gravados segundo o estilo kassita de Babilônia, indicado dilatados contatos com as fronteiras orientais (65).

Do palácio de Cadmo apenas restam indícios do luxo e opulência. Hoje, em vez de perfumes exóticos e aromáticos vinhos, os escombros exalam o acre odor de terra queimada, evocando o fim trágico de uma raça. No perímetro dessa cidadela, uma das mais recordadas nas tragédias de Esquilo, teve seu fim a estirpe de heróis. Na obra “Sete Contra Tebas” se narra esse drama. Cilindros, vasilhas, inscrições, nenhum dos restos retirados do solo queimado da Cadmea permite supor que a cidadela foi habitada após o incêndio. O sítio permaneceu desocupado até a era cristã, confirmando as informações que nos transmite Estrabão (66).

Na época que Pausânias passou pela localidade, onde diziam se encontravam os restos da própria casa de Cadmo, perto dos portais e do túmulo dos soldados que lutaram contra as tropas de Alexandre, foi-lhe indicado o lugar que Cadmo teria semeado os dentes. Pausânias não deu crédito a essa história (67). Longe estava de imaginar como eram grandes os dentes do Dragão que Cadmo semeou!

(64) Pausânias IX, XVI, 3.

(65) The Cambridge Ancient History V. II, Part 2, p. 168, 3rd Ed. Cambridge, 1975.

(66) Idem, p. 169

(67) Pausânias, IX, X, 1

A CIDADELA DE LACÔNIA QUE CONSERVOU O NOME DO BRASIL

Nos mitos e na toponímia da península de Lacônia, no extremo sul da Grécia, se conservou a proeza realizada por Cadmo. Como se a costa oriental de Lacônia representasse a costa da América do Sul, e tudo pudesse ser reduzido ao pequeno porto micênico situado no golfo de Argos, o porto recebeu o nome Brasiae. Lacônica geografia. A pequena península de Lacônia representava em miniatura toda a América do Sul!

O nome antigo de Lacônia, citado por Homero, era Lacedemone. Segundo alguns autores, este nome se devia ao herói Laco ou Lacedemone; segundo etimólogos modernos se devia a Lacus ou Lacuna, devido ao profundo vale rodeado por montanhas, pelo qual corre com largura o Rio Eurotas. Privilegiada por seu agradável clima e belos panoramas, foi denominada por Homero com o epíteto de “A amável Lacedemone” (Ilíada, III, 443). É possível que há três ou mais milênios estivesse coberta de exuberantes bosques; hoje, entretanto, seu solo desgastado é adequado apenas ao cultivo da oliveira. No meio de Lacônia, a oeste do que foi Brasiae, está Esparta, banhada pelo Eurotas, Fig. 8. Seus habitantes (espartoi = homens semeados), se diziam descender dos dentes semeados por Cadmo.

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Fig. 8 – O nome Brasil é muito antigo e se conservaria numa cidadela da Lacônia.

Pausânias (III, 24, 3) refere que os habitantes de Lacônia conservavam uma série de mitos relacionados com o mundo inferior ou Hades (68). Os habitantes de Brasiae dizem possuir uma história que não se encontra em nenhum outro lugar da Grécia. Narram que a filha de Cadmo, Semele, após ter de Zeus seu filho, Dionísio, foi depositada num cesto, e junto a seu filho foi arrojada nas costas de Brasiae. Por este motivo, prossegue Pausânias, o nome do lugar ao qual foram levados pelas ondas do mar, e que antes se chamava Oreiatae, foi mudado por Brasiae. Efetivamente, Brasis (BrasiV) expressa em grego a ação pela qual as ondas arrojam na praia os objetos que flutuam no mar (69). Isto nos leva a reconsiderar a origem do nome Brasil. Teria realmente o nome Brasil sua origem na palavra semítica BRZL, que significa ferro, como afirma o professor Cyrus Gordon? Ou o seu nome teria vindo do significado micênico do verbo Brasis, e o ferro, descoberto nessa época e achado com abundância no Brasil, teria recebido seu nome desse lugar?

(68) No outro lado do mundo familiar aos taciturnos Lacedemones, também se conservaram indícios de presença grega, na península Yucatán. Não posso deixar de citar neste ponto um fragmento da História de los Incas escrita pelo erudito navegante e descobridor espanhol Pedro Sarmiento de Gamboa (*1532, + 1592). Concordando com as observações de outros historiadores e cronistas, assinala a presença grega na América Central, inclusive citando uma província de México que conservou o nome Lacandones, que parece corresponder ao nome grego Lacedemones. Eis aqui, textualmente, as curiosas observações de Sarmiento de Gamboa: “Dice Strabón, y Solino, que Ulises, despúes de la expugnación de Troya, navego en poniente, y en Lusitania poblo a Lisbona; y después de edificarla, quiso probar su aventura por el Mar Atlântico, Oceano por dende ahora venimos a las índias, y desaparició, que jamás se supo después que se hizo. Esto dice Pero Anton Beuter, noble historiador valenciano y, como el mismo refiere, así lo siente el Dante Aligieri, ilustre poeta florentino. Este Ulises, dando crédito a lo dicho, podemos deducir por indícios que de isla em isla vino a dar a la tierra de Yucatán y Campeche, tierra de Nueva Espana, porque los desta tierra tienen el traje, tocado y vestido grecesco de la nacion de Ulises, y muchos vocablos usan griegos y tienen letras griegas. Y desto yo he visto muchas senales y pruebas. Y llaman a Dios Teos, que es griego, y aún en toda Nueva Espana usan deste término Teos por Dios. Oi tambien decir, pasando yo por allí, que antiguamente conservaron éstos una áncora de navío como en veneración de ídolo, y tenian cierto Génesis en griego, sino que disparataba a los primeros pasos. Indicios son bastantes de mi conjetura sobre lo de Ulises. Y de allí se pudieron poblar todas aquellas províncias de México, Tabasco, Jalisco y las septentrionales éstas, y los Zapotecas, Chiapas, Guatemalas, Honduras, Lacandones, Nicaraguas y Tlaguzgalpas, hasta Nicoya y Costa Rica y Beragua.” Ps. 98 e 99, Pedro Sarmiento de Gamboa, História de los Incas, EMECÉ EDITORES, Bs. As. 1943.
(69) Brasilas ou Brasidas, nomes próprios de pessoas em Sparta [BrasiV] (Brasis) significa borbulhamento (da água), fermentação, fervura. Também significa a ação da água de rejeitar objetos na praia. P. 376, A. Baily, Dictionnaire Grec Français, Hachette, Paris, 1950.

ADENDA

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AS CORRENTES OCEÂNICAS

Thor Heyerdahl publicou um estudo (70) no qual demonstra a rota mais provável através do oceano, seguida pelos antigos navegadores, para chegar a América. Segundo Heyerdahl, uma poderosa corrente começa ao norte da África, passa pelas ilhas Canárias e se dirige diretamente ao litoral norte da América do Sul e ao Golfo de México. Esta rota oferece um clima calmo e favoráveis condições de navegação, com ventos predominantes na mesma direção da corrente oceânica. Ele escolheu como porto de partida, nas duas expedições Rá, a cidade de Safi, na costa Atlântica de Marrocos (71). Com esta escolha queria provar que fenícios, egípcios, líbios, e outros navegadores do Mediterrâneo, seguiram a mesma rota, tirando vantagem dos ventos e correntes oceânicas favoráveis, para chegar à América milhares de anos antes de Colombo. Ao sul de Safi se encontra a montanha que os nativos sempre denominaram Dyris ou Daram e Heródoto a identificou com o mitológico monte Atlas. Eu demonstrei que Heródoto acreditava na realidade geográfica dos mitos, porém os limites ocidentais do mundo conhecido se haviam reduzido, terminando nos extremos ocidentais de Europa e África. O mitológico Atlas, referido na Teogonia de Hesíodo, se encontrava na América do Sul (72). Perto de Safi estão as formidáveis ruínas megalíticas do porto fenício de Lixus. Seus muros orientados pelo Sol e construídos com imensas pedras perfeitamente ajustadas a seco, nos fazem lembrar os muros ciclópicos dos Incas. Ressaltando a importância que teve o porto fenício de Lixus na antiguidade, Heyerdahl o descreve assim (73): “A historia de Lixus se desvanece na alvorada da história. Os romanos a chamaram Cidade Eterna e diziam que ali repousam os restos de Hércules, o grande herói dos gregos e fenícios (Os gregos o chamam Héracles e o identificam com o Melkart dos fenícios). Os adoradores do Sol que a construíram, orientaram os gigantescos muros megalíticos com o Sol. Seu mais antigo nome conhecido, em efeito, foi Cidade do Sol e, certamente, quaisquer que a tenham fundado e construído, conviviam nessa cidade com: sacerdotes, astrônomos, escribas, hábeis pedreiros e ceramistas.

(70) Heyerdahl, Thor (1963), Feasible Ocean Routes to and from the Americas in Pre-Columbian Times, American Antiquary, Vol. 28, Nº 4, pp. 482-488.

(71) “Las Expediciones RA”, por Thor Heyerdahl, Editorial Juventud, Barcelons (España), 1980.

(72) “Journey to the Mythological Inferno”, Chapter II, by Enrico Mattievich, Rogem Press, Denver, 2010.

(73) “Isolationist or Diffusionist?” by Thor Heyerdahl – (1971) www.whiteindians.com/diffusionism.html

A travessia oceânica desde África até América, na Idade de Bronze, navegando pela corrente das Canárias, como demonstrou Heyerdahl nas duas expedições Rá, podia realizar-se em menos de dois meses e possivelmente não mais de um mês, considerando a destreza dos navegadores fenícios. No entanto, o retorno desde América não era factível pela mesma rota, porque a embarcação deveria vencer a forte corrente, e navegar contra os ventos prevalecentes desfavoráveis. A dificuldade da viagem de retorno é citada explicitamente no sexto livro da “Eneida” de Virgilio (VI, 126-129), nas instruções que o troiano Enéas recebe da Sibila de Cumas, antes da jornada ao mundo inferior:

Ó Troiano, filho de Anquises, gerado do sangue dos deuses
É fácil a descida ao Averno: durante as noites e os dias está
Aberta a porta do negro Plutão; mas volver pelos mesmos passos
E sair (novamente) para os ares vitais, esta é a grande dificuldade (*).

(*) Daqui, o adágio: hoc opus, hic labor est = aqui é que a porca torce o rabo.

Nos mil e vinte dois versos da Teogonia, Hesíodo cita “O grande Oceano”, “A profunda corrente do Oceano” e “A corrente do Oceano que circunda a terra” pelo menos seis vezes. Evidentemente, esses versos indicam um conhecimento das correntes oceânicas, que hoje sabemos resultam da aceleração de Coriolis, devido ao movimento de rotação da Terra. Certamente essas “correntes oceânicas” não foram inventadas pelo poeta. Seu conhecimento veio das experiências náuticas realizadas pelos navegadores oceânicos da Idade de Bronze.

No mapa das correntes oceânicas, que apresenta no seu livro Ra (primeira figura dos Adenda), Heyerdahl mostra que devido à aceleração de Coriolis, a corrente tem movimento anti-horário no hemisfério sul e circula no sentido horário no hemisfério norte. Desde a desembocadura do Rio Solimões — que todos conhecem pelo nome Amazonas — a corrente equatorial favorece a navegação para o hemisfério norte. A partir da Flórida, inicia-se uma forte corrente tropical, chamada Corrente do Golfo, que se dirige ao norte da Europa. Logo, a jornada natural de retorno, desde a foz do Amazonas, seguindo a corrente oceânica, era mais extensa e demorada.

A descoberta da Corrente do Golfo, ou mais corretamente, a sua primeira citação, aconteceu duas décadas após o descobrimento do Novo Mundo. A início de março de 1513, Ponce de Leon levantaram velas navegando desde Porto Rico, com três embarcações, numa viagem de exploração. Seguindo rumo noroeste a expedição descobriu Flórida, aportando em algum lugar da costa leste, próximo ao Cabo Canaveral. Levantando velas em 22 de abril para voltar ao Sul, encontraram “uma corrente tão forte que, apesar de ter vento favorável de popa, eles não conseguiram avançar, sendo arrastados em direção contrária”. Foi assim que a Corrente do Golfo foi notada pela primeira vez. Durante as centúrias seguintes, os marinheiros aproveitaram a Corrente do Golfo, porém essa informação era mantida como um segredo profissional (74).

A Corrente do Golfo se forma no Mar Caribe, a partir da Corrente de Guiana. É uma corrente intensa de águas mornas que se deslocam em direção norte desde a costa da Flórida e logo giram na direção leste desde Norte Carolina, fluindo rumo nordeste através do Atlântico. A Corrente do Golfo flui aproximadamente 300 vezes mais rápida que a corrente do Amazonas. A maior velocidade é na superfície, de aproximadamente 5,6 milhas por hora (9km por hora). Conforme avança ao norte a velocidade da corrente diminui e se reduz a uma milha por hora (1,6km por hora). A Corrente do Golfo transporta aproximadamente quatro bilhões de pés cúbicos de água por segundo, uma quantidade de água superior a toda a água transportada por todos os rios combinados do mundo (75).

(74) “The Sea” by H. A. Marmer, Chapter XVIII, p. 266, D. Appleton and Company, New York, 1930.

(75) www.oceanservice.noaa.gov/facts/gulfstramspeed.html

O DRAGÃO DE CEM CABEÇAS VENCIDO POR HÉRCULES

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A constelação circumpolar de Hércules, entre Lira e Boieiro (Bootes), mostra o herói vestido na pele do leão, ameaçando com a clava ao Dragão e pisando com seu pé a cabeça da serpentiforme constelação. A constelação do Dragão, seu corpo enrolado no céu estrelado, é representada entre as duas Ursas. Na terra essa serpente protegia a entrada do jardim das Hespérides, identificadas com as Górgonas por Hesíodo (Th. 274-278): As Górgonas habitam no outro lado do glorioso Oceano, nas regiões extremas próximas da noite, lá onde estão as Hespérides de sonoras vozes: Esteno, Euríale e Medusa; esta última, que sofre um espantoso infortúnio, é mortal; as outras duas são imunes à morte e à velhice…” Depois que Hércules mata o Dragão, é posto por Juno (Hera) entre as estrelas (76). Para realizar esse trabalho, Hércules recebe de Hélios a embarcação que lhe permitirá cruzar o Oceano (77).

Existem três contendas sobre a mitológica representação de Draco. De longe a versão mais comumente aceita da sua representação no céu é a versão que identifica Draco com o dragão vencido por Cadmo (78). Eu também concordo com esta interpretação. Na minha interpretação geográfica o mito estelar de Cadmo é uma alegoria que imortaliza a conquista do Rio Amazonas na Idade de Bronze (79). Divido à precessão dos equinócios, uma das estrelas de Draco, provavelmente a Thubam, era a estrela mais próxima ao pólo norte, uma referência muito importante para a navegação oceânica. Draco é visível durante todo o ano no hemisfério norte, mais para o navegador situado no hemisfério sul, debaixo da latitude de 10º Draco é invisível. Para conquistar o Rio Amazonas, situado no hemisfério sul, de certa forma, é necessário “matar” Draco. Virgilio (Georgicas, Livro I, 242-246) chama Maximus Anguis à constelação de Draco, e localiza o Rio Styx, do mundo inferior, no hemisfério sul:

Um dos pólos esta sempre acima de nossas cabeças; o outro debaixo de nossos pés
Frente a frente do negro Styx, nas profundidades onde vão as almas.
Aqui, o imenso Dragão passa, a maneira de um rio, ao redor e através
Das duas Ursas, as Ursas que temem mergulhar no plano líquido.

(76) “The Myts of Hyginus” by Mary Grant, p.184, University of Kansas Publications, Lawrence, 1960.

(77) “Python” – A study of Delphic Myth and its Origin – By Joseph Fontenrose, p. 345, University of California Press, 1980.

(78) www.constellations-class.webs.com/lesson4.htm

(79) According the inscribed Marmor Parium stele, preserved in the Ashmolean Museum, Oxford, Cadmus is placed three hundred ten years before the fall of Troy. Hercules lived fifty two years and his death was placed about twenty sixth years before the Troyan Era. Thus, Cadmus precedes Hercules by about two hundred years. “Fasti Hellenici”, The Civil and Literary Chronology of Greece, by Henry Fines Clinton, Vol. III, p. 75 to 85, Oxford, At the University Press, 1834.