“Só mesmo, eufemisticamente, pode-se considerar como planejamento urbano o processo de trabalho que levou alguns técnicos a elaborarem os “planos” de Belo Horizonte (engenheiro Aarão Reis), Goiânia (Atílio Correia de Lima e irmãos Coimbra Bueno), Aracajú (engenheiro Sebastião Pirro), Teresina, Aragarças, Fortaleza (arquiteto português Silva Paulet), Piracicaba, Londrina e de outras cidades brasileiras. Na melhor das hipóteses, são simples traçados urbanos convencionais, em regulamentação de zoneamento, sem hierarquização de vias e sobretudo sem a implementação necessária e indispensável ao prosseguimento do processo de planejamento. Isto sem falar nos aspectos sociais e econômicos, não considerados no processo. Eram planos para a época em que foram elaborados: só dentro dessa relatividade de tempo podem ser aceitos como planos. Em verdade, não passavam de “riscos” de cidades…”
De fato, é discutível a época a partir da qual pode-se falar em urbanismo ou planejamento urbano, associando-se, em geral, tais conceitos ao evento da Revolução Industrial, ocorrida na Europa no final do Séc. XVIII. Entretanto, a história das cidades apresenta vários “riscos” acompanhados de precisas normas de ocupação, etc., em épocas diversas e até anteriores à era cristã…
Se considerarmos o período da Revolução Industrial (entre 1760 e 1830) encontraremos um momento em que nas artes, predominava o neoclassicismo, na arquitetura, a técnica sobrepunha-se à arte, e, na economia, o capitalismo era favorecido pelas características do sistema de produção industrial. A sociedade européia modificava-se em consequência das melhores oportunidades de trabalho oferecidas nas cidades, ocasionando um êxodo rural sem precedentes.
A sociedade industrial é urbana e impõe relações sociais e espaciais próprias, que alteraram profundamente as até então existentes.
O grande crescimento das cidades européias, ocorrido a partir de 1830, e suas consequências, provocam um movimento de observação, reflexão, crítica e polêmica por parte dos pensadores da época, que foi denominado Pré-Urbanismo. As discussões desse período denunciam as condições de deterioração física, moral, social e econômica da classe operária e são movidas por sentimentos humanitários ou por consciência política.
A crítica a essa “desordem” levou-os a propostas de modelos “ordenados” para as cidades industriais, que tiveram como base o próprio tempo: o passado (valores antigos foram perdidos) assumindo posições nostálgicas ou progressistas e apontando dois modelos principais de organização espacial da sociedade: o progressista e o culturalista.
O modelo progressista, que tem como principais autores Owen, Fourier, Richardson, Cabet e Proudhon, baseia-se em princípios racionalistas da filosofia iluminista e determina o indivíduo “típico”, sua habitação, suas necessidades e prazeres, com forte preocupação com a higiene.
O espaço do modelo progressista é aberto, rompido por vazios e verdes, onde as diversas funções urbanas são separadas em zonas especializadas, buscando seu máximo rendimento. Tal proposta espacial adquire, no Século XX, formato espetacular, com as concepções de alta densidade habitacional e grande verticalidade, advogadas por Le Corbusier. O exemplo mundial mais completo desse modelo é Brasília.
O modelo culturalista, baseia-se nas obras de Ruskin e William Morris (influenciados por Pugin), pré-rafaelistas, e no final do Século XIX, por Ebenezer Howard, o “pai da cidade-jardim”.
A concepção ideológica desse modelo não teve como ponto principal o progresso, mas a cultura. Sua crítica não se dirige às condições do indivíduo, mas ao grupamento humano, no conjunto constituído pela cidade.
O espaço do modelo culturalista é irregular e assimétrico, ligado à natureza (áreas verdes preservadas em seu estado natural ou cuidadosamente arrumadas), dividido em áreas limitadas, de baixa densidade. No centro, os prédios púbicos (imponentes), os jardins e as vias principais, e na periferia, as habitações (diferentes umas das outras), limitado o conjunto, por uma área verde, (cinturão agrícola) num arranjo orgânico. Entre nós, alguns exemplos aproximados são o bairro do Grajaú, no Rio de Janeiro e as cidades de Belo Horizonte e Goiânia.
Os dois modelos foram propostos principalmente na Inglaterra e na França (progressista) e na Inglaterra e Alemanha (culturalista). Na Alemanha, a discussão sobre modelos de cidades orgânicas já se fazia em 1829.
Mas, e Petrópolis com isso?
Ora, sabe-se que Koeler, nascido em 1804, na Alemanha (Mogúncia, cidade da região do Reno), aqui chegou em 1828, já formado engenheiro. Trabalhou, a partir da regularização de sua situação profissional e funcional, no traçado e na recuperação de várias estradas, em boa parte dos atuais estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, conhecendo, portanto, as características e peculiaridades naturais da região em geral e da Mata Atlântica, em particular. Desde 1837, manifestava à Corte, desejo de construir, até Minas, uma cidade inteiramente européia, o que consegue, com a concessão da escritura de arrendamento da Fazenda do Córrego Seco (1843).
A publicação desse decreto já apresenta, aos interessados, normas precisas para ocupação, construções, arborização, usos permitidos ou proibidos, etc…
Em 1846, Koeler apresenta o projeto da Vila Imperial de Petrópolis (fig. 1), em forma tentacular, acompanhando o curso dos rios e córregos e dividido em doze quarteirões, em torno do centro (Vila Imperial).
Observando-se o projeto e associando-o ao decreto, veremos que se conforma um verdadeiro plano urbanístico, com indicações claras de zoneamento, hierarquização viária, normas de ocupação e construção, parcelamento diferenciado, proteção ao meio ambiente, abastecimento de água e retirada de esgotos.
Considerando-se ainda a topografia e as peculiaridades geológicas e geotécnicas do local, as características de Mata Atlântica e o traçado, volume, etc. dos rios envolvidos, concluiremos que o plano é perfeitamente adequado às condições naturais do sítio e, portanto, elaborado em bases científicas.
Por outro lado, o desenho e os usos do centro, a relação do sistema viário com a estrada da Serra da Estrela, as categorias, dimensões e destinações dos prazos, indicam um intencional desenho (modelo?) urbanístico.
Se compararmos com o modelo básico e ideal proposto por Ebenezer Howard para as “cidades-jardins” (fig. 3), e se, de maneira esquemática, fizermos uma abstração dos condicionantes naturais (topografia e traçado dos rios), obteremos um desenho no mínimo intrigante (fig. 4), pois que semelhante ao modelo anterior.
Petrópolis nasce assim, com um traçado que não segue o padrão urbanístico geral (tabuleiro de xadrez), nem o português colonial (irregular, com rios ao fundo dos lotes), adotados à época e não é conseqüência de centralização administrativa, evolução de economia rural ou crescimento de povoado à beira de estrada. Também não utiliza exclusivamente mão-de-obra escrava e sistema construtivo ou tipologia coloniais. É obra de determinação imperial, idealização científica e construção européia.
O projeto de Koeler segue normas que não são totalmente escritas (com personalidade forte, ele determinava e fiscalizava as construções) e sua morte permitiu alterações ampliações e deturpações, cujas conseqüências reforçam hoje, o acerto do “risco” original.
Restam algumas questões:
Koeler formou-se e veio da Alemanha numa época em que a discussão do modelo orgânico, culturalista de cidades, era intensa;
As duas únicas cidades culturalistas construídas àquela época foram “New Town”, em Letcworth (1903) e “Hampstead Garden Suburb” (1907), ambas na Inglaterra.
Ebenezer Howard publicou o livro “Tomorrow: a Peaceful Path to Real Reforme” em 1889 (onde explica a concepção das “cidades-jardins”), mas sua discussão, como vimos, é anterior a isso.
E, ainda, algumas perguntas:
Teria Koeler mantido correspondência com a Alemanha? (certamente);
Teria ele tido a intenção de fazer uma cidade culturalista?
Se a resposta a essas perguntas for positiva, Petrópolis foi planejada, seguiu o modelo culturalista de urbanismo e foi a primeira do mundo a ser executada sob tal filosofia.