CURSO VARNHAGEN – AULA INAUGURAL (INTRODUÇÃO AO CURSO)

Décio Werneck

Para qualquer observador, mesmo para aquele menos capaz, com pouca força de observação, é fácil ver a geral alegria que está em todos nós nesta sala.

Para todos nós que somos filhos ou que vivemos nesta centenária Petrópolis, com tantas e tão vivas tradições na vida de nossa terra, é a alegria justa e comovente, e vem emoldurada em uma certa vaidade e até um pequeno friso de orgulho: é que pela ação benfazeja do Instituto Histórico de Petrópolis magnífico guardião das tradições, inteligente pesquisador dos episódios e justo analista da vida petropolitana; e pela ação desta nossa Universidade Católica que é, sem nenhum favor e sem nenhum exagero, a mais rica, a mais valiosa, a mais importante de quantas expressões de valor tem Petrópolis – e é justo lembrar que tem muitas e admiráveis – temos um Curso de Extensão Universitária, que será mais uma prova de cultura, de saber, de conhecimento, ou dizendo melhor – mais uma manifestação de pujança, de força e de vida.

Daí nossa justa e vaidosa alegria. – Mas que curso teremos?

Quis o bom destino que fosse um curso de História. Quis o bom destino que ele se chamasse Curso Varnhagen.

Pela História mais nos aproximamos da nossa terra, mais avivamos e fortalecemos o amor ao Brasil. Pela lembrança de Varnhagen melhor poderemos medir a grandeza de nossa gente.

Na verdade, foi homem extraordinário. Filho de oficial alemão, nascido no Brasil, passou a sua meninice em Portugal, onde viveu de 1823 até fins de 1840. Foi oficial do exército libertador de Pedro I contra os absolutistas de D. Miguel. Terminada esta luta, voltou aos estudos e desde aí sua vida ganha um curioso e notável aspecto pela intensidade, pelo volume, pela quantidade de trabalho que pode e soube apresentar.

Em Portugal, ainda, examina arquivos, faz descobertas e publica reflexões e críticas ao Roteiro de Gabriel Soares e ainda ao Diário da Navegação da Armada de Martim Afonso, obra de Pero Lopes.

Nas vésperas de viajar para o Brasil publica Crônica do Descobrimento. Chega ao Rio e logo faz questão de ser reconhecido como cidadão brasileiro, o que consegue por um decreto especial de 41.

Ingressa na carreira diplomática e começa uma longa peregrinação, mas em cada posto não se contenta com seus naturais afazeres: estuda, pesquisa, investiga e, mais afortunado do que muitos outros, sempre acha e encontra alguma coisa.

Não fica somente no campo da História por onde havia começado: entra pela literatura onde também realiza importantes trabalhos que vão marcando todos os lugares em que vai vivendo, até o último, Viena d´Áustria onde faleceu em 1878.

Nas suas estadas intermediárias pelo Brasil não descansava. Empreendeu várias viagens por São Paulo, Minas, Goiás, Mato Grosso, Pernambuco e quantos outros lugares, sempre como um caçador feliz, vinha com informe novo, com uma descoberta que enriquecia a sua vida de sábio.

Assim conseguiu, através de estudo e de pesquisa, uma erudição que chega a impressionar, a sua atividade chega provavelmente a mais de cem publicações e entre estas avultam a empresa árdua que é a sua História Geral do Brasil e a História das lutas com os holandeses – não citaremos outras obras embora existam com o mesmo valor.

Escritos estes livros num período em que a História tinha um profundo sentido descritivo e pragmatístico, será livro de um simples narrador e de um simples cronista ou obra de um historiador tal como agora se entende?

Homem de um século escreveu com as letras da sua época e focalizou um sentido histórico preferentemente, deixando em segundo plano, como que na penumbra de um fundo de palco, a idéia e a condição; mas a sua intuição, talvez mais que a inteligência e a vontade, levaram-no a fixar o quadro quase que em todos os planos, e parece-nos que seus livros, lidos com os olhos de hoje, deixam ver as relações de causa e efeito, cena e cenário, e assim, a sua História do Brasil não vale como o maior livro da época, vale como um livro vivo – e poderíamos perguntar se o simples fato desta sua História do Brasil e História das lutas com os holandeses, faz dele um “historiador”. E que historiador, se o conceito deste termo vem mudando através dos tempos e mudou do seu século para os nossos dias.

A História nasceu irmã gêmea da literatura. Tinha como esta a faceirice da beleza. Depois foi por longo tempo a companheira da moral. Teve como esta a obsessão pelo justo e pelo certo. E agora neste último século, vai se juntando às ciências, e tem a certeza ou pelo menos a pretensão da verdade.

Já Dionísio de Halicarnasso chamava a atenção para a semelhança de forma animada e pitoresca que existe entre a história de Heródoto e os poemas de Homero.

Na história da guerra do Peloponeso e na Retirada dos Dez Mil a extraordinária concisão de estilo é talvez mais admirada como modelo de narração do que propriamente como amplo conceito histórico.

César terá sido mais notável pela sua retórica e pela sua gramática que propriamente como historiador, e assim todos os que escreveram nesta época têm os seus zelos maiores voltados para a sintaxe, e suas obras, embora importantíssimas para a história, são sobretudo expressões de literatura, em que o estilo é o principal cuidado.

Malgrado todos os escritores romanos, a verdadeira história de Roma é bem conhecida através de Müller, Momnssen e Coulange; para nós, os olhos de hoje vêem melhor aqueles tempos que os próprios olhos romanos. É que são os olhos da ciência.

A Idade Média e a Idade Moderna trocam o sentido de “historiador”.

Desde Orósio até os que escreveram pelo século 18, todos têm um sentido mais ou menos faccioso e pragmatístico, sentido, aliás, que ainda vive em muitos de nossos livros mais recentes.

Maquiavel bosqueja uma concepção histórica em que o homem fica sujeito aos astros e às estações. O movimento universal se repete na sociedade. Os estados se organizam, desenvolvem-se e se corrompem. Deus e o Destino determinam e regulam a vida dos homens. Numa curiosa concepção religiosa ele afirmava que a fortuna dispõe da metade das nossas ações, mas a outra metade fica entregue ao nosso livre arbítrio. Para ele os fatos históricos se repetem, porque, em todos os tempos, existem os mesmos desejos e as mesmas paixões e assim, toda a história se desenvolve num misto de impulsos passionais e de regras de ordem sobrenatural.

Foi com a Ciência Nova de Vico que começou um novo conceito.

A História devia procurar o imutável no variável, a unidade na diversidade, ou, mais explicitamente, a lei no fato que nascia de duas constantes – a ação dos homens e a intervenção da Providência, muitas vezes contrária à vontade humana e sempre superior a ela. Não é o fatalismo, porque ele admitia o livre arbítrio.

O desenvolvimento geral das nações passa sempre por três idades que se repetem eterna e necessariamente: a idade divina, a idade heróica e a idade humana.

Primeiramente os homens foram dominados pela imaginação que divinizou os seres e as coisas; em seguida, apareceram os heróis; finalmente vem a civilização da razão.

A Honra, o Cumprimento dos Deveres Civis eram o fim fundamental da sociedade.

A essas situações correspondem uma estrutura teocrática, uma estrutura heróica e por fim uma estrutura humana.

A História mudava de rumo, mudança que se vai completar com os trabalhos de Montesquieu, de Herder e finalmente com a obra de Comte que tanta importância tiveram.

Hoje procuramos na obra histórica e sua historicidade, a sua unidade e a sua verdade.

A Historicidade é um ato de compreensão e de inteligência, estimulado por uma exigência da vida prática, diante da proposição de resolução de um problema teórico, que é aquele ato de pensamento; o conhecimento de uma situação real, com processo da realidade em seu desenvolvimento.

A Unidade de um livro de história está no problema que o juízo formula, e ao mesmo tempo que formula inicia o processo de sua resolução e o resolve. É, portanto, uma unidade de natureza absolutamente lógica. Um problema de natureza histórica liga-se normalmente a muitos outros problemas correlatos, mas, por isso mesmo que correlatos todos se ligam àquele principal e nele se unificam, e então a unidade lógica permanece. A verdade histórica nasce dos fatos históricos nas suas realidades absolutas capazes de constituir a realidade histórica que é a expressão da totalidade relativa dos fatos. Nasce do critério interpretativo adequado ao fato por interpretar, e assim se estabelecem nítidas e persuasivas as imagens, tanto quanto límpidos e convincentes os conceitos. Na verdade histórica o fato demonstra a teoria e ao mesmo tempo a teoria explica o fato.

É evidente que não bastará, se quisermos ter a justa consciência do Curso que se inicia, uma apreciação vaga e indefinida da obra dos nossos historiadores. Torna-se necessário que a sua análise e a sua crítica sejam estabelecidas em função de um princípio histórico.

Seria curioso, e curiosidade fundamentalmente útil para perceber a História sob o ponto de vista moderno, examinar a obra clássica de Varnhagen buscando nela a unidade e sua historicidade, buscando e assim o digo porque não tem a ênfase necessária à correlação de fatos que, dentro do tempo – aliás séculos – correspondam a um sentido da lei histórica.

Para exemplificar dentro de um conceito de Maritain:

1º) a lei do processo da consciência moral: o que ganhou e o que perdeu a civilização brasileira no sentido de extensão e no sentido de profundidade no campo do dever e das obrigações? – até onde a conscientização do direito natural pode atingir; basta focalizar para análises a relação de indígenas e negros e a situação de escravidão? – e esta mesma situação de escravos, que limite ou que limites sofreu pelo hábito e pelas normas jurídicas; enfim, como atuou esta lei?
2º) a lei do duplo progresso contrastante, lei da degradação e revitalização simultânea da energia, da qual a evolução da história depende: que dificuldades no tempo e no espaço, a exuberante natureza brasileira exigiu do ânimo e da força espiritual dos colonizadores? – como reagiram eles, homens da Renascença que eram, diante das dificuldades que aqui encontraram?
3º) lei da ambivalência: que dúvidas, que inseguranças, que incertezas contrastaram com a determinação, com o propósito e com o sucesso?

E a análise se limita a um conceito. Se quisermos cair nos sentidos materialistas, que só porque materialistas são falsos haveria que procurar as trilhas fundamentais de Hegel ou da dialética.

Mas não há porque, nesta hora, enveredar por este caminho.

Estamos certos que a apresentação de ricos e variados informes, de minuciosos e vastos aspectos descritivos, e finalmente, de julgamentos pessoais dirigidos quase sempre só pela paixão e simpatia não levam a nenhuma conclusão; por isso, na obra do Visconde de Porto Seguro, é necessário ver não só o fato e não só o cenário, mas o espírito, a alma que dá vida e dá movimento à personagem histórica, isto é, a idéia fundamental que o move, idéia que se diversifica porque abrange o sentido religioso, o sentido moral, o sentido jurídico, o sentido econômico e o sentido social.

É a busca desta idéia que evolui no tempo, e de certo modo se mantém uniforme no espaço, que pode nos trazer a consciente explicação da unidade de que hoje tanto nos orgulhamos.

Este sentido de unidade encontrado na obra histórica do epônimo do Curso, e enriquecido por idêntica idéia de unidade que há de ser vista no valor histórico dos outros historiadores que serão estudados nas conferências subsequentes, hão de trazer uma explicação consciente para o milagre da união deste país de mais de sete milhões de quilômetros quadrados de superfície e que nasceu de alguns núcleos populacionais situados a imensas distâncias uns dos outros.

O que devemos ver na História do Brasil não são simples fatos mais ou menos emocionantes, mais ou menos curiosos, ou mais ou menos intensos; mas as razões que prendem estes fatos aparentemente isolados uns dos outros, e é evidentemente que esses liames são o verdadeiro espírito e a verdadeira essência da História.

Através deles é que se estabelecem as relações de causa e efeito, de efeito e de causa que constituem uma sequência uniforme.

É preciso não imaginar a existência de episódios soltos, perdidos aqui e acolá no próximo e no longínquo passado. Historicamente estes episódios não existem e se existissem não seriam históricos.

Este é um sedutor convite para o aspecto pragmatístico; e se encontrarmos unidade de ação também é necessário procurarmos unidade de meio, mas na fria e pura realidade, sem os arroubos de exuberante lirismo de alguns historiadores dos séculos 17 e 18.

Este sentido de busca que teríamos traçado na obra do Visconde de Porto Seguro, há de ser seguido do modo melhor e mais brilhante pelos professores ilustres que terão a seu cargo a esperada vitória do Curso Varnhagen.

A tarefa que lhes cabe é sem dúvida importante e, agora, certamente maior, pela pobreza com que o Curso foi iniciado, mas, essa dificuldade, para gáudio do Instituto Histórico de Petrópolis e para o gáudio da Universidade Católica há de ser plenamente vencida.

Não quero terminar sem agradecer de público a distinção, tão injustificada quanto súbita, que me conferiu o ilustre Presidente do Instituto Histórico de Petrópolis, e sem apresentar aos que me deram a honra de ouvir estas despretensiosas palavras: nosso Muito Obrigado.

Petrópolis, 6 de agosto de 1966.