MEMORIAL DE MARIA COMPRIDA: OU SERIA O “SACI PERERÊ DA MARIA COMPRIDA” UMA PROSTITUTA?

Oazinguito Ferreira da Silveira Filho, associado titular, cadeira n.º 13, patrono Coronel Amaro Emílio da Veiga

“Em toda África Ocidental, a crença na ação constante dos antepassados falecidos assume uma força incalculável… sente-se a presença contínua deles; os indivíduos são persuadidos de que eles velam pela casa, que estão diretamente interessados em todos os assuntos da família e em suas propriedades, que fornecem colheitas abundantes e garantem a fecundidade…” (G. Parrinder, La Religion em Afrique Occidentale, p.139, in, As Culturas e o Tempo, Editora Vozes/Edusp)

É habitual que a pesquisadores sempre ocorra curiosidade por denominações criadas para elementos que compõem o universo geofísico, principalmente quando o são de nosso relevo. Assim, montanhas, morros, rios e outros tiveram a etimologia das palavras que as compõem, pesquisadas e, muitas vezes, explicadas, pois surgia, por vezes, como resultado da visita de viajantes ou exploradores, cristãos, em sua maioria, para comemorar dias santificados, ou como contemporaneamente por reflexo do cotidiano das sociedades que lhe são próximas.

Um ex-aluno, hoje excursionista, chamou nossa atenção para o nome de um dos pontos culminantes de Petrópolis, considerado por alguns especialistas em escaladas como o segundo maior monumento monolítico do mundo, por sua condição. Falamos do “Pico da Maria Comprida”, e que também representa uma das mais importantes elevações do Estado do Rio de Janeiro. O pico localiza-se em Araras, erguendo-se a uma altitude de 1.926 metros, e podendo ser seu cume alcançado por caminhada. Mas sua parede sul, ao que parece nunca foi escalada, existindo uma só via conquistada na face norte. A verticalidade e grandiosidade da face sul foram fatores que conduziram a maioria dos alpinistas, profissionais ou amadores, a desistirem de se aventurar em suas paredes. A via pode ter cerca de 900 metros, podendo segundo alpinistas ser a maior do Brasil.

Precisamente no momento em que fui inquirido, não me ocorreu razão para a denominação, mas procurei justificar historicamente, que poderia ser um fato do contexto social da própria região, e que iria pesquisar melhor, pois isto nos remeteria talvez a uma investigação até de ordem social, já que de ordem histórica, até onde me recordava nada existia, principalmente, quanto a viajantes do século XIX. Seria “Maria Comprida” uma das moradoras, sitiante ou até fazendeira da área de Araras no século XIX?

Lembrei-me de, quando do levantamento do arquivo de jornais para confecção da Cronologia de Noticias Petropolitanas para as Comemorações do Centenário da Tribuna de Petrópolis, haver me deparado com informações curiosas nos noticiários do ano de 1902, ano da fundação da própria Tribuna.

Porém, para certificar-me do século XIX, recorri ao professor Jerônimo Ferreira Alves, grande especialista neste século, e com prodigiosa memória para fatos e monumentos. O professor prontamente me confirmou o que já sabia quanto ao século XIX, mas lembrou-me o trabalho realizado pelo professor Paulo Monte da década de 20, Corografia Petropolitana, considerado o primeiro manual de registros geográficos e geofísicos de Petrópolis (pg.31/33, Tipografia Ipiranga, Petrópolis, Obra Comemorativa do Centenário de Pedro II, 1925), e mais, com sua prodigiosa mente, lembrou-me de um tópico onde se apreciava o fenômeno da “Lenda do Saci Pererê da Maria Comprida”, relatado por Monte, ao que prontamente recorri ao texto. Ele ainda acrescentou que, segundo anotações e fotos inéditas existentes, estas doadas e em seu poder, um grupo de excursionistas petropolitanos, com o fim de elucidar a misteriosa “lenda”, escalou a montanha pela primeira vez, segundo consta, em 1933, data da organização de um determinado, Clube ou grupo, Excursionista Petropolitano.

Outra nota sua, se faria presente na lembrança de uma publicação da década de quarenta, a Pequena Ilustração, que em sua edição de 02/11/1941, na pagina 9, publicou provavelmente uma pesquisa respaldada em Monte, tamanha a similaridade com o texto original pelo que pude constatar.

Mas nos ficou a interrogação, quem teria sido “Maria Comprida”? E onde entraria a lenda do Saci Pererê?

Procuramos, então, pesquisar e formular hipóteses para a denominação do pico, e caso estivermos certos, estas poderiam ser mais simples do que se pudesse pensar, partindo-se até de fatos reais ocorridos na própria sociedade.

Como primeira hipótese, teríamos o de uma provável habitante do arraial que era próximo ao pico, isto, segundo relatos do próprio Monte, no século XIX, e que se destacava em uma região tão rústica como a do Rio da Cidade. Quem sabe uma espécie de “Maria Moura” da histórica obra de Raquel de Queirós. Um padrão de mulher rara para a época, mas comum a um interior como o brasileiro.

Outra hipótese seria de na virada do século XIX para o XX, por sediar a capital do Estado, e devido aos ataques da armada sublevada, a cidade viver segundo os jornais um verdadeiro “desgarro” social, com a proliferação de prostíbulos ao final da Rua do Imperador, então Avenida XV de Novembro, exatamente em sua parte mais velha. Para tal, segundo os jornalistas, favorecia a existência de casas e casarões muito antigos, alguns quase à ruína, e que remontavam ao tempo da formação da povoação, de seu período colonial, e que proporcionavam sedes às casas de jogatina, além da existência de mesas de jogos a céu aberto nas ruas próximas.

Pela Rua Souza Franco, predominava ao largo dos armazéns de diversas mercadorias e de apoio à Estação da Leopoldina, além de inúmeros botequins, onde diversas prostitutas, muitas moradoras da região da Floresta, nossa “Lapa” de então, e que perambulavam a procura de clientes que chegavam vindos pelo trem do Rio de Janeiro, que eram em sua maioria, funcionários públicos ou comerciantes.

Entre estas prostitutas existia uma de origem portuguesa cujo nome era Dinair Maria Sampaio, com dezenove anos. Alta, de longas pernas, mais ao que tudo indica um destaque, diferindo da maioria das prostitutas da região, pois era branca e estrangeira. Um elemento distinto para uma época onde no Rio e São Paulo o domínio da “atividade” era das “polacas” e “francesas” e no interior como o petropolitano, das negras, ex-escravas em sua maioria, já iniciando a habitação das encostas dos morros petropolitanos como o da Floresta ou o da Caixa D´Água, atual 24 de Maio. Esta portuguesa era conhecida por todos por “Maria Comprida” e deveria ter uma legião de clientes e admiradores pela forma emocional com que a imprensa tratou na época o fato (Tribuna de Petrópolis, 07/04/1902).

De um modo geral, notícias sobre ela não chamariam a atenção nesta época, se considerarmos que a prática da prostituição era observada pelo rigor moral e religioso do período como uma “doença”, e que como tal deveria ser tratada pela polícia com a maior repressão. Mas o caso de “Maria Comprida” foi acompanhado com grande zelo pela imprensa, o que denotava não somente forte preocupação como também “compromisso” com o acontecimento, estendendo-se este, no noticiário, desde o dia do acidente até seu falecimento.

Pelas informações fornecidas, Maria Comprida teve violenta discussão à época com uma “crioula”, como preconceituosamente os jornais denominavam as negras que estavam fora dos limites da lei, e que supostamente seria também uma prostituta. Mas nas proximidades de onde se encontravam, havia a presença de um “praça” (guarda), que, imediatamente, lhe dá ordem de prisão, ao que Maria Comprida, provida de longas pernas inicia uma corrida por dentro da linha férrea sendo prontamente perseguida pelo praça. Ela seguia em direção à Floresta onde morava próxima à altura do “túnel”. Mas ao chegar à curva que ficava por trás de uma serraria, o trem expresso procedente de Entre-Rios, a colheu em seu limpa-trilhos derrubando-a por terra já sem uma de suas pernas. Maria Comprida foi, então, removida com urgência pelo praça e por populares para o Hospital de Santa Tereza, onde três dias após o infausto, devido a graves ferimentos, veio a falecer.

A lenda fala de um Saci, Maria Comprida, coincidentemente, ficara sem uma de suas pernas, e é Paulo Monte quem afirmava que este Saci assustava os homens que ousassem subir ao pico, uma punição, talvez por quererem “chegar à morena” em tal situação. Que a lenda se deve a registro muito antigo na região, isto é incontestável, e que um “velho” que morava nas proximidades do pico, confirmara a Monte tal fato é verdade registrada por seu livro, a tal ponto que Monte pressupõe ser a denominação tão antiga, “… a tradição popular com relação ao fato é tão velha como o pequenino arraial abandonado que em ruína se encontra nas proximidades de Maria Comprida…”, porém maiores relatos, e anteriores à década de 20, não foram até o presente, encontrados. Quem sabe, a “lenda” fora “desenvolvida” pela própria sociedade com o objetivo de punir o praça que a perseguiu, e passou também a assustar os demais? Ou ainda, em meio a tantos negros que viviam em seu contexto suburbano de então, principalmente que vinham da região do Rio da Cidade, para o centro da cidade de Petrópolis, o tão comentado acontecimento com Maria Comprida, tenha tornado-se mito, pois do fato ao registro de Monte seguem-se pouco mais de duas décadas.

O texto de ilustração na abertura deste ensaio nos permite poder justificar, antropologicamente, semelhante lenda no primitivismo das sociedades. Em toda e qualquer cultura a noção de tempo e espaço é medida pela crença na ação dos antepassados no cotidiano dos grupos humanos, determinando, suas ações e interesses. No Brasil pela sua forte influência africana gerando a cabocla, os mitos e as lendas tornam-se continuidade deste processo que os europeus nunca conseguiram compreender e, portanto, reprimiam com grande constância por sua formação cristã.

Como mencionamos, trata-se de hipóteses, e outras podem ocorrer. Mas esta, seria tão própria para sua época, se não fosse o registro do infausto pelos jornais, e até que venha a ser encontrado um registro anterior da denominação e possamos ao inverso atribuir a Dinair ser apelidada, jocosamente, pela coincidente montanha. Outro fato que se tornaria inexplicável para alguns pesquisadores, é o porquê de um pico tão distante do centro da cidade?

Talvez possamos atribuir a origem da lenda, a dimensão tomada pelo acontecimento nos jornais petropolitanos, como já mencionado, um fato inusitado, quando analisamos a imprensa do período. Muitos de “seus clientes”, fossem talvez de posição elevada para à época, bacharéis, fazendeiros ou até mesmo populares como sitiantes ou meeiros, como os que havia na área rural de Petrópolis, tenham desenvolvido a lenda por residirem próximos ao monólito. Mas talvez a verdade, permaneça com Paulo Monte, Artur Barbosa, Walter Bretz ou outros que viveram estes acontecimentos e, simplesmente, não deixaram maiores informações.

OBS.: A publicação original reproduz a foto histórica da grupo que em 1933 conseguiu escalar a Maria Comprida pela primeira vez, merecendo grande relevo na comunidade excursionista do país no período.