O MITO DOS COROADOS

Sylvio Adalberto, a convite

Em 1500, à época do descobrimento, calcula-se que havia, espalhados por todo o litoral, cinco milhões de índios. Cem anos depois, por volta de 1600, os maiores grupos do litoral, de predominância Tupi, já haviam sido exterminados. No final do século XVI o número de colonos portugueses, ainda não ultrapassava a casa de poucas dezenas de milhares, a que se somava um número crescente de escravos negros e um número indefinido, com enorme capacidade de multiplicação, representado pelos mestiços mamelucos, filhos de portugueses e outros europeus, com mulheres índias, que dentro em pouco seria a maioria da população. A partir dos cruzamentos, os filhos de europeus com índias, identificavam-se geneticamente com os pais e para todos os efeitos, sociais e culturais, não eram índios. Assim os índios brasileiros de tradição Tupi, começaram a desaparecer como povos, na primeira geração de mamelucos, que eram índios, em tudo, na fenotipia, nos hábitos e na língua, transformaram-se, historicamente, nos mais eficazes e irreconciliáveis perseguidores das populações indígenas. Três pestes contribuíram para acelerar o processo de extermínio: as guerras, entre eles e contra o colonizador, a miscigenação e a catequese. A essência da raça brasileira é tipicamente Tupi, a raça predominante. Tudo o que herdamos dos índios é proveniente dos tupis. Somos etnicamente uma raça tupinizada. Até 1725 a língua principal do Brasil era o Tupi, a lusitanização do país, a lingüística, só tem inicio com a chegada dos primeiros escravos.

Acredita-se que os euscaras, ou bascos da Europa, provavelmente serviram de massa ancestral aos povos que dominaram esse território. A língua que falavam, o typi, cabeça de geração, é surpreendente. Chamam-se também tapuias, que quer dizer avós. A guerra entre tribos, sua principal ocupação e encarada com tal naturalidade, que fazia parte dos ritos e das celebrações religiosas, era a causa principal da subdivisão das tribos. Invadindo e conquistando, a lei era exterminar os varões e conservar as mulheres e crianças, que representavam a futura força militar e o poder econômico ativo da tribo. A escravidão da mulher já era anterior a todos os costumes e condição inseparável da vida, que a própria natureza, imoral por índole, justificava no panteísmo cruel que alicerça as religiões primitivas, inspiradas na força bruta e na guerra. As mulheres encontravam na tribo outras mulheres na mesma condição de escravas e faziam o serviço pesado, a que eram obrigadas, incompatível com o orgulho do macho, caçador e herói. Chegando a puberdade as mulheres eram submetidas à tosca cirurgia, dilatando as tetas, para que nas viagens ou no trabalho da terra, amamentassem os filhos, carregados às costas. Comendo frutos do mato, caça e peixe, devastando tudo, num raio de quilômetros, infestando com seu cheiro o chão e as árvores, o que fazia com que os animais sobreviventes se afastassem a medida em que avançavam. Por isso andavam sempre na direção do sol nascente, atrás de comida e na esperança ancestral de encontrarem a Terra Sem Males, o Paraíso sonhado de suas antigas lendas, onde acreditavam que corriam rios de leite e de mel e as frutas estavam todas ao alcance da mão. (O alemão Kurt Nimuendaju, que viveu quarenta anos entre os índios Guaranis, no seu livro Terra sem Males, fala do seu fascínio pela busca dos índios por seu Paraíso terrestre). Quando encontravam um rio muito largo, ou o grande Paranan, o mar, dançavam noites e dias, ao som de maracás, flautas e goles de cauim, porque acreditavam, que se dançassem infinitamente acabariam flutuando e assim atravessariam a grande água. Acabavam extenuados e quando acordavam, diziam que Monan, o que tudo sabe e não tem começo nem fim, não permitira que lograssem seus intentos, porque não haviam conseguido continuar dançando.

Na América do Sul, os Tupis dispuseram em paz de longos e escuros séculos da idade quaternária para se desenvolverem, sem competidores, ficando paralisados no estado rude de sua origem, o mesmo não sucedendo aos seus contemporâneos do norte, oriundos da antiga raça que povoou a China e o Japão dos tempos idos. Grupos de Samoiedas do Himalaia, subindo para o norte da Ásia, foram parar no Alasca e daí até às regiões Boreais, dominadas pelos esquimós, seus primogênitos, avançando para o sul, submeteram os antigos habitantes e produziram a primeira raça mestiça de arianos que apareceu na América. Escalando a Groelândia e as costas do Lavrador, os escandinavos formaram as colônias. Pelo mesmo processo da guerra, propiciaram o surgimento de outra família mestiça que avançou para a Flórida e se espalhou pelas ilhas. Esses mesmos mestiços encontrando-se nas regiões do Mississipi constituíram a família dos peles vermelhas.

Os Samoiedas (tolstecas), seguindo para o sul tomaram o ocidente até o istmo do Panamá e fundaram os fabulosos reinos da civilização Maia, centralizada no Chiapas, cujos vestígios estão presentes nas ruínas de Palenque, Capuã e Guatemala. Os mestiços do Mississipi penetraram no Chiapas e fundaram os reinos do Yucatan, assimilando a antiga civilização. Estes peles vermelhas, transpondo o istmo fundaram o Popaiã, que se tornou o primeiro foco de luz na América do Sul. Dessa procedência provavelmente saíram os Aimarás, que se afastando do poder dos Quéchuas de Popaiã, vieram criar nos planaltos da Bolívia, os fundamentos básicos da vida pastoril e agrícola que preparava o advento mágico dos incas. Os escandinavos partindo da Flórida e das ilhas, saltaram o Iucatã, venceram os estados Maia e centralizaram a conquista no Anahuaque. Aí fundaram sua capital Tecnochtiellã (México). Mas como acontece em todas as grandes conquistas e dominações militares, enquanto caem por terra as instituições políticas, as sociais resistem. Foi quando surgiram os espanhóis. Aliados habilmente aos vencidos, explorando os antigos rancores, apoiando-se na república aristocrática de Tlascala contra os Astecas, assim conquistaram o México. (l2 de novembro de 1519).

Com a invasão dos mestiços da Flórida, os Iunças da Nicarágua, passaram o istmo e se instalaram no Equador. Confinando com Quéchuas e com os Aimarás, fundaram um reino de pouca duração. Isso sem falar nos Ante, que denominaram a grande cordilheira, e nem nos Australóides, irmãos dos Tupis, que viviam no Chile e os Goiá, que expulsos pelos Iunças das nascentes do Orenoco, desceram e foram se instalar nas terras que se estendem do Amazonas ao mar das Antilhas, chamadas por isso Goianas. Foram esses os primeiros povos do norte, que se encontraram com os Tupis no ocidente, enquanto os Antes, expulsos do Peru, vieram para as regiões do Madeira e produziram com os Tupis do oriente, a raça Guarani. Os Goiá teriam atingido a posição dos Maias, sob cuja influência despertaram, senão tivessem sido bruscamente interrompidos pela invasão dos Carib (filho de branco). Senhores da Jamaica e de outras terras do golfo, os Carib foram os mais adiantados dos povos americanos. Foram o terror dos espanhóis e dos mais que habitavam as ilhas. Assustados os Goiá largaram em grandes hordas a terra do Orenoco, transpondo o Amazonas, e foram se instalar em Goiás. Do cruzamento dos Carib com os Goiá para além do Amazonas, surgiu a poderosa família dos Carijós, ou Cariocas, que se encontrando no Tocantins com os Goiá, travaram terrível guerra de hegemonia, que se alastrou por toda parte. Os Carijós foram os primeiros habitantes do litoral.

Os Carijós, derrotando os Goiá no Tocantins, se dispersaram entrando uma parte para o Maranhão. Outra, atingindo Parnaíba, desceu e se espalhou, perseguida pelos Goiá e entraram no Tieté e os impeliram para o sul, como os Guaranis que foram obrigados a se embrenharem na região da qual ficaram senhores de toda parte ocidental. Martim Afonso encontrou os carijós no rio da Prata e Aires do Casal assim os descreveu: tinham formas delicadas, belas, pés e mãos pequenos, olhos azuis, cabelos finos e lisos. Eram inteligentes e dóceis. As mulheres eram muito esbeltas. Além dos Goiá, que também se chamavam Tupinaki, cruzando com outras raças nasceram os tupinambá, cruzamentos com os Carijós e que se espalharam por todo o litoral, subdividindo-se em centenas de outras denominações, que foram se degenerando e se descaracterizando como nações.

Apenas para darmos uma idéia da capacidade de locomoção dos índios, citaremos um minúsculo trecho da Expedição do Governador do Peru Ursúa Lope de Aguirre, nos anos de l560-l56l. Eis suas palavras, traduzidas do espanhol para o português por Jean François Cleaver: …índios brasiles saíram, em número de dez ou doze mil, de suas terras, na costa do Brasil, em muitas canoas, com suas mulheres e filhos. Iam com eles dois espanhóis portugueses. Um dizia que se chamava Mateo, a buscar melhor terra que a sua. Segundo o que eu mais creio, a fartar seus malditos ventres de carne humana, a qual todos eles comem e se perdem por ela. Demoraram em subir o Peru pelo dito rio (Amazonas) mais de dez anos, e dos doze mil índios somente chegaram uns trezentos, com algumas mulheres e vieram a dar numa povoação chamada Chachapoyas, e assim ficaram entre os espanhóis.

“Coroados”, era como os colonizadores designavam várias tribos brasileiras, de diferentes famílias, por rasparem a cabeça a maneira de coroa. Por esse nome também eram chamados os índios Kaingang, que viviam nos estados de São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Os que chegaram a Petrópolis, e aqui foram encontrados pelos primeiros colonizadores, por volta de 1730, eram em sua maioria, restos de tribos Puris, que por sua vez já eram sobras das nações Xumetós, Pitão e Araris, que chegaram até Muriaé, Pombas e Cantagalo, ou fragmentos de nações mais antigas, como a dos Tamoios e Sarucus. Os Coroados de Campos já são oriundos da união entre Goitacás e Coropós.

Segundo Augusto Saint Hilaire, os “Coroados” eram muito feios. De pequena estatura, cabeça achatada em cima e de tamanho enorme, mergulhada em largas espáduas. Andavam quase totalmente nus, cabelos negros e longos sobre os ombros e caindo pelos lados do rosto. A pele de um escuro sem brilho e salpicada aqui e ali por urucum e a fisionomia refletia algo de ignóbil. Suas habitações eram bem rústicas, feitas de madeira e cobertas com folhas de palmeira ou bambu, alguns grupos dormiam em redes, usavam arco e flecha, utensílios de pedra, pratos e tigelas feitos de cabaças e folhas trançadas. Viviam guerreando entre si. Com o avanço da civilização, as tribos que viviam em Petrópolis, como em todas as partes do país, foram sendo aos poucos dizimadas. Muitas fogueiras tiveram por combustível o corpo dos índios “Coroados”, vencidos em “heróicas” batalhas. Os que sobraram perambulavam entre o Rio Preto e o Paraíba, chegando a assolar Sacra Família do Tinguá, Pati do Alferes e muitas outras povoações nos galhos do Caminho Novo. Tantos e tão ferozes se tornaram que o Vice-Rei Dom Luis de Vasconcelos, 1789, manda o Capitão de Ordenanças Inácio de Sousa Werneck rebatê-los nas próprias aldeias ocultas no mato, diminuindo-lhes a ousadia. Incumbe o mesmo Vice-Rei a João Rodrigues da Cruz, fazendeiro em Pau Grande, de domesticá-los. Consegue a confiança dos índios e com o padre Manoel Gomes Leal, consegue aldeá-los à margem do caminho do Rio Preto, onde os sobreviventes ficaram vigiados. E assim terminou a verdadeira história dos “Coroados”.

Para saber muito mais sobre o assunto:

Cartas de José de Anchieta – (1554-1594) Civilização Brasileira
Aldeias de Índios do Rio de Janeiro – Joaquim Norberto de Souza e Silva
Memórias Históricas – Monsenhor Pizarro
O Homem e a Serra – Alberto Lamenho – 1918
A Fundação do Brasil – Darcy Ribeiro e Carlos de Araújo Moreira Neto – Vozes
Aires de Casal – Corografia Brasileira
Kurt Nimuendaju – Terra sem Males – Unicamp